Entrevista de Renato Suttana

 



As imagens de sua poesia se detém, frequentemente, nas figuras de diferentes animais, sempre construindo intrincada indagação sobre seus existires e sobre os nossos, por conseguinte. Diferentes autores da literatura se utilizaram de animais como personagens para metaforizar a existência humana. Como se percebe essa temática em sua obra?

 

RS: Meu contato com animais remonta à infância. Quando era menino, vivi numa casa que tinha dois grandes quintais. Num deles criávamos galinhas e um porco, mas havia canteiros de hortaliças que favoreciam o aparecimento de pulgões, joaninhas, lagartas, besouros e outros bichos. Até as minhocas nos interessavam. Uma das nossas diversões era capturar joaninhas, por exemplo, que em geral têm cores variadas ou manchas em seu dorso, e examinávamos suas larvas. Capturar caramujos e promover corridas de lagartas eram brincadeiras comuns. Dávamos nomes às galinhas, observando o seu comportamento, e acompanhávamos o crescimento delas no terreiro, bem como o surgimento das ninhadas. No entanto, os primeiros poemas que escrevi tomando os bichos como temática surgiram só no final da década de 1990. Num belo dia, escrevi alguns versos em que tentava captar, por assim dizer, a identidade de alguns animais, aquilo que os distingue dos outros em meio à imensa variedade da fauna, entendendo que cada animal é o que é do modo como é porque tem características muito próprias. Mas confesso também que minha intenção, quando me lancei a essa aventura de escrever sobre os bichos, foi tomá-los como metáforas de nossa condição: cada indivíduo aparece no mundo, de fato, como um ser único, nascido por acaso num canto do cosmo, para viver num pequeno planeta onde se nasce e se morre todos os dias. Tomar consciência disso nos aturde em certos momentos da vida, mas nos insufla também um sentimento de responsabilidade para com a existência e para com nós mesmos, tanto do ponto de vista de nossa identidade pessoal, quanto do ponto de vista dessa oportunidade única, a nós concedida pelo cosmo, de estarmos aqui a olhar para a natureza e a contemplar os seus mistérios. Já o outro lado da questão, no que diz respeito a esses poemas, é que, quando os escrevi, não tive intenção de publicá-los. Mais tarde, em 2005, quando eu ainda trabalhava como professor na Universidade Estadual do Paraná, tive a ideia de enfeixá-los numa plaqueta para distribuí-los entre estudantes e professores durante uma semana de Letras. Como não eram muitos, devo ter escrito mais dois ou três, para formar o conjunto do que viria a ser, em seguida, a coletânea original do livro Bichos, publicada naquele ano. Mas aí vieram mais ideias: apresentei a coletânea ao escritor e artista plástico português Nicolau Saião, e ele se entusiasmou com o livro. De pronto, começou a enviar ilustrações para a obra — uma para cada animal —, muito expressivas, e imaginei pudessem formar, com os poemas, alguma coisa maior ou mais consequente, para além do limite de uma simples plaqueta a ser distribuída localmente em forma de apostila fotocopiada. Tomei então a iniciativa de mandar imprimi-la e dar a público meu primeiro bestiário. As que vieram em seguida ou mais tarde de certo modo remetem a esse empreendimento inicial: Outros bichos, retomando o espírito original do livro mestre; Bichos imaginários, dando à temática um tratamento surrealista; Fauna & Cia., que lhes imprime um tratamento alegórico, de sentido político; e talvez alguma outra que venha a surgir. Quanto à poesia satírica e humorística, os bichos também estão lá, pois os dois primeiros livros dos Opinionautas — que costumo chamar de epopeia bufo-satírica — são coprotagonizados por dois cavalos falantes, e os quatro livros seguintes (dois ainda não publicados) têm como uma de suas figuras centrais um animal em forma de grifo, chamado Eriq. Mas aparecem também os sapos e os lêmures falantes, além de um centauro, que eventualmente representa a fusão do homem com o animal. Assim, posso concluir que a imagem do bicho deixou de ser acidental na minha criação e assumiu proporções maiores, podendo ser que eu volte a ela no futuro ou que continue a voltar.

 

A escolha das leituras de um poeta, geralmente, indicam também a forma como lida com a própria escrita e com os temas que a compõem. Suas pesquisas de Mestrado e Doutorado são, respectivamente, a respeito de Manoel de Barros e João Cabral de Melo Neto. Que portas esses e outros autores abrem em sua obra poética?

 

RS: É difícil, ou impossível, ler a obra de um grande poeta sem receber e absorver algum tipo de influência. Meu primeiro contato com a poesia de Manoel de Barros foi acidental: li sobre ele numa revista de literatura no início dos anos 1990 e, sabendo de sua existência, comprei um de seus livros numa livraria. Naquela época o poeta começava a ser descoberto pelos meios literários, embora já tivesse uma longa trajetória de publicação, iniciada ainda nos anos quarenta, tendo, portanto, na altura, já alcançado e ultrapassado em muito a sua maturidade literária. Quando fiz o mestrado na PUC de Minas Gerais, entre os anos de 1993 e 1995, escrevi um pequeno ensaio a respeito de sua obra, para servir como trabalho de conclusão de uma disciplina. Aí, na hora de fazer a dissertação, propus à professora a ideia de alongar o estudo e transformá-lo numa pesquisa. Ela topou. Isso me levou a mergulhar fundo na poesia do corumbaense, com consequências, suponho, para a minha própria criação. Mas não sei dizer até que ponto recebi dele uma efetiva influência e qual aspecto ela assumiu. Quanto a João Cabral de Melo Neto, eu o estudei no doutorado. Tinha a intenção de aplicar à obra dele o mesmo método de estudo que apliquei à de Manoel de Barros, porém acabei me detendo em questões de crítica literária, cujo tratamento me pareceu mais urgente, a ser feito antes de eu escrever sobre a poesia propriamente dita. No final, fiquei apenas com a crítica, porque o estudo imaginado originalmente não aconteceu. Falei de Cabral, depois, em um ou dois artigos acadêmicos publicados no correr dos anos, mas perdi o interesse em fazer o estudo mais longo. Se Cabral me influencia? Com certeza influencia, devo admitir; mas, do mesmo modo que Barros, não sei até que ponto. Como eu disse, é difícil conviver com dois grandes escritores — entre os quais, diga-se de passagem, descubro muitas afinidades —, esmiuçar as suas obras e interrogá-las durante um certo período de tempo, sem sofrer algum tipo de influxo. É importante considerar o elemento da aprendizagem que há em tudo isso: aprendizagem de uma certa liberdade do pensar e do escrever poesia que se adquire com Manoel de Barros, e a ideia do rigor no tratamento da forma que João Cabral nos ensina. Tudo isso deve estar, acredito, amalgamado naquilo que escrevo hoje em dia. E há que considerar o aprendizado com outros poetas: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cecília Meireles, que sempre li com fervor. Atualmente, leio muito os portugueses — Pessoa, Sá-Carneiro, José Régio — os admiro imensamente (para dizer a verdade, li-os antes até de ter lido os brasileiros) e ando mergulhado em seus escritos. A leitura de Régio, em particular, me estimulou a publicar um livro de sonetos com o título de Quando me abriram portas. A leitura de Pessoa e seus heterônimos me ensinou as possibilidades de manejo do verso livre principalmente. E assim por diante. Com Antero de Quental se aprende a disciplina e a contenção do soneto.

 

A riqueza cultural do Brasil é tão grande e tem nos fornecido diferentes poéticas e olhares. Em sua caminhada profissional ou como estudioso, que diferenças você observa entre as poéticas dos diferentes Estados em que esteve, se é que há?

 

RS: Não sou muito atento a esse tipo de coisas. Mas as regionalidades existem, por certo. Enquanto morei no Paraná, estive muito ocupado com a elaboração da minha tese de doutorado e lia muita crítica, ao mesmo tempo em que expandia meu conhecimento de poesia brasileira, lendo desde os árcades até os simbolistas. Descobri, lá, por exemplo, a poesia de Helena Kolody e de Foed Castro Chamma — grandes poetas que mereciam ter uma projeção nacional maior do que aquela que têm atualmente. Não sou leitor fervoroso de Leminski, mas reconheço a sua enorme influência sobre os poetas de hoje, que é importante levar em conta. Dos poetas que viveram ou vivem fora do eixo Rio-São Paulo ou do Sudeste em geral, ando muito ocupado com Francisco Carvalho, Nauro Machado e Alberto da Cunha Melo, por exemplo, em minhas leituras atuais. A descoberta da poesia de Carvalho me abriu portas importantes, do mesmo modo como ocorreu com a descoberta de Manoel de Barros. Quando descobri Alberto da Cunha Melo, fiquei perplexo em saber que aquele poeta existia e ainda estava em atividade (morreu pouco depois), embora gozando de pouca notoriedade no cenário nacional. Ignorar os mestres é uma lástima e um grande prejuízo para os nacionais. Devíamos prestar mais atenção aos nossos grandes escritores, pois não estão brotando todos os dias nos gramados. Felizmente — embora de um modo às vezes confuso — também a internet tem aberto caminhos, permitindo um contato mais instantâneo com a alta poesia, quando ainda é desconhecida, coisa que os livros nem sempre favorecem, dada a sua pouca circulação e, no caso atual, o fato de serem editados por editoras de pequeno porte e sem acesso às livrarias.

 

As mídias e a internet facilitaram ou dificultaram o fazer poético?

 

RS: Como eu disse, a internet abre caminhos e franqueia passagens, permitindo uma comunicação mais imediata com a criação poética das diversas regiões. Assim, aproxima autores e leitores, de um modo que antes não era possível sequer sonhar. Um dos benefícios (e não sei se benefício) é que, de repente, não somente estamos a ler os autores, como também podemos nos comunicar com eles por meio das redes sociais. Formamos grupos, trocamos impressões, compartilhamos experiências. Entramos no WhatsApp, e lá está a multidão do poetas numa tertúlia infinita. Já o lado negativo é que isso favorece um sentimento de falsa proximidade e de intimidade, que nem sempre é benéfico. Deixamos de tratar um poeta mais velho por “senhor” e começamos a chamá-lo de “você”, como se fosse o nosso colega de bar. Os sentimentos de admiração e reverência desfalecem, conforme o hábito dos tempos. No entanto o distanciamento a distância — é um pressuposto da literatura, pois certas coisas são feitas ou existem para serem vistas de longe, como as pinturas murais e as catedrais. Não me interessa, às vezes, saber que um poeta está a trabalhar num livro e que tem realizado estas e aquelas operações para chegar a este ou àquele resultado. Há pessoas publicando seus esboços na internet, quase em tempo real — o que é no mínimo uma temeridade. Temos uma grande curiosidade quanto a isso, mas devemos nos perguntar se realmente queremos saber por onde passou a elaboração de um poema admirado ou se, ao sabê-lo, obteremos algum tipo de vantagem. Em geral, formamos apenas uma visão distorcida das coisas, algo viciada pelas ilusões da proximidade. Particularmente, evito comentar sobre a elaboração de meus próprios poemas ou livros nas redes sociais, embora aqui e ali publique inéditos, que poderão passar por revisões e transformações no futuro. Acho que publicar intimidades não interessa a ninguém, até porque vale pensar um poema que levou anos a ser gestado tem, no final, o mesmo valor que um poema que foi escrito em questão de minutos, contanto que ambos tenham alguma coisa a dizer e sejam — como se dizia antigamente — realmente inspirados ou capazes de suscitar uma emoção. A arte sem mistério ou que não emociona se torna tediosa. Escarafunchar a intimidade da escrita, falar de coisas como “processos criativos” é vício da era presente, estimulado pela crítica acadêmica (leia-se: universitária), que o incutiu nas pessoas — crítica muitas vezes formuladas por pessoas que nunca escreveram um poema ou um conto. Na minha opinião, não existe tal coisa como um “processo criativo”, como se o poeta se sentasse no seu laboratório ou na sua oficina e começasse a experimentar para ver no que vai dar. Existe, a meu ver, apenas a vida, a experiência, a luta cotidiana com a palavra, que pode até redundar em poesia, mas nunca se sabe. Rilke dizia que versos são experiências, opinião com a qual tendemos a concordar. Agora, outra questão que eu gostaria de observar, quanto ao advento da internet e suas repercussões no universo da literatura, é a seguinte: a impressão que tenho é de que a instantaneidade da comunicação pela rede de computadores vem propiciando o surgimento de um tipo novo de literatura, uma literatura escrita para figurar na rede. Observe o tipo de poesia que alguns autores e críticos publicam em suas redes sociais. Não é qualquer poesia que produzirá impacto no Facebook ou no Instagram, assim como não é qualquer tipo de análise crítica ou consideração teórica de caráter percuciente que merecerá os views e os likes. Um bom texto de crítica, por melhor que seja, costuma produzir impacto infinitamente menor que um comentário breve publicado no blogue de um colunista famoso. Então, podemos observar o surgimento de uma poesia, de uma forma destinada às redes sociais e específica para elas. Há, inclusive, um soneto, uma quadra, um haicai que se escreve hoje não para ser lido no papel, mas para ser apreciado na tela do celular ou do computador. Essas experiências costumam ser breves e de caráter muito fugidio, tal como beber um refrigerante. Isso é uma mudança, não sei se boa ou se ruim — estou apenas constatando —, mas uma mudança, e vejo-a como a indigitação de um caminho para começar a responder à sua pergunta.

 

Diversos autores precisam custear suas publicações e não tem acesso a um público maior, o que jamais vi como demérito ou desqualificação. Em um tempo de likes e visualizações em que editoras se focam, muitas vezes, não na qualidade literária, mas na quantidade de seguidores que poderão se tornar consumidores ou propagadores de uma falsa qualidade, como vê essa relação entre mercado, escrita e publicações?

 

RS: Esta é uma pergunta interessante. Quando fiz meu mestrado, tomei o ônibus em Belo Horizonte e fui parar em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, para conversar com Manoel de Barros. Bati à porta de sua casa, e ele me atendeu. Minha intenção era entrevistá-lo, fazer perguntas sobre questões que poderiam figurar na minha dissertação. Ele não quis dar entrevista, preferiu apenas falar. Então, num determinado momento, sentado no sofá de sua sala, na altura de seus quase 80 anos, me assegurou de nunca ter pago pela impressão de um livro. Nunca esqueci o que ele disse naquela noite, mas ao longo da vida tomei uma decisão de sentido contrário: eu não me importaria e até faria questão de pagar pela publicação de meus livros, de preferência todos eles. Não era uma atitude de rebeldia gratuita. Tratou-se de uma escolha pessoal, que foi se consolidando ao longo dos anos, à medida que tomei consciência das dificuldades efetivas, para os poetas, de publicarem seus livros em editoras comerciais. Na época da conversa com Manoel de Barros, eu não tinha essa consciência. De certo modo, ainda não havia formulado em minha mente um projeto claro de publicação de livros, fosse de poesia ou de prosa, porque isso para mim quase não existia. Depois, mesmo mudando eventualmente de opinião, fui descobrindo as reais dificuldades, as quais, por assim dizer, me empurraram ainda mais para dentro da minha decisão. Assim, para resumir, ela praticamente se confirmou em todos os sentidos, pois até hoje tive apenas um livro de poesias publicado por iniciativa de editora, que é o Altiplano, dado a público por iniciativa do Camilo Prado, editor da Nephelibata — em tiragem muito pequena, que provavelmente não chegou a 20 exemplares. Do mesmo modo, uma edição bem simpática dos Bichos foi produzida em Moçambique, no âmbito de um projeto de produção de livros para serem distribuídos em escolas, por iniciativa de algumas pessoas e sem intenção de lucro. Demorei anos para ver a cara desses livrinhos, que um dia me foram enviados por uma funcionária da educação moçambicana. Voltando, pois, à pergunta, posso dizer que ela se conecta ao que eu disse acima sobre o impacto da internet na produção literária de hoje: a busca de likes e visualizações tende a distorcer e a falsificar o significado profundo da experiência literária, entendida esta como evento que modifica o curso das nossas vidas e, no dizer de Maurice Blanchot, nos conduz ao deserto. Não o deserto das ideias ou das expectativas, mas o deserto da solidão que acomete todo aquele que se aventura no campo da criação artística. No âmbito da publicidade, a poesia deixa de ser profecia, deixa de ser compromisso com a linguagem, convertendo-se em consolo para o ego: escrevo para me “sentir” existindo, como se diz, ou como um paliativo para as minhas dores de cotovelo. (Recentemente vi no Facebook a propaganda de um curso de cura pela escrita promovido por um escritor famoso do Brasil.) Mas a prova da poesia que realmente importa é a sua capacidade de profetizar, num sentido que se aproxima do religioso, mas sem dever nada a ele. Quando Ferreira Gullar diz que o preço do feijão não cabe num poema e que a poesia “não fede nem cheira”, ele está a pronunciar algo muito importante para a nossa época, com repercussões nos dias atuais. Igualmente, quando João Cabral escreve Morte e vida severina, ele põe em questão um modo de vida em sociedade e uma situação de exclusão e produção de miséria tornados cada vez mais agudos nos dias correntes. O poema “Tabacaria” de Fernando Pessoa é pura atualidade, sendo, portanto, pura profecia, pois fala de um modo de vida que se tornou o nosso e o de bilhões de pessoas pelo mundo afora. Ele dá expressão e forma ao nosso ser. Com certeza, quando Pessoa o escreveu, ele não tinha essa intenção ou essa pretensão de se tornar tão representativo. Ele apenas se sentou lá e escreveu sobre aquilo que sentia e via à sua volta. Se escrevesse pensando em likes e visualizações, provavelmente teria se frustrado. Mas é difícil dizer isso aos poetas jovens, porque a ideia do anonimato está em pleno conflito com a da importância e da profundidade da profecia, as quais, por sua vez, impõem o reconhecimento de uma universalidade. No fundo, todo poeta quer ser lido e reconhecido, quer que os seus livros cheguem ao maior número possível de pessoas; porém, como distinguir notoriedade de universalidade, fama de relevância, que tão facilmente se confundem frente ao olhar distraído? Uma das ideias mais inadequadas do nosso tempo — a de que aquilo que é apreciado e “curtido” por muitas pessoas deve ser necessariamente relevante ou fundamental para elas — advém dessa confusão. E a confusão advém, por sua vez, da ansiedade e da pressa em encurtar caminhos, de supor que uma coisa pode acontecer antes do seu tempo devido, como se a planta pudesse crescer antes de a semente ter germinado.

 

O saudoso Nonato Gurgel me perguntou certa vez para que servia a poesia e minha resposta passa, claramente, pela falta de serventia prática como objeto no mundo das coisificações, mas que sem ela, nossas existências e realidade seriam opacas de beleza e sentido. Afinal, a seu ver, para que serve a poesia?

 

RS: Essa é uma das questões sobre as quais reflito cotidianamente. Às vezes, sou tomado de desânimo, não passando um dia sem que eu tome a decisão de parar de escrever poesia e me dedicar a outros assuntos, quem sabe à fabricação de brinquedos artesanais para distrair as crianças. Mas aí a poesia retorna. Quando menos espero, surge um verso em minha cabeça, logo em seguida acontece uma estrofe. Avulta, depois, a curiosidade de ver como ficaria aquilo, caso se convertesse em poema. E assim, dia após dia, a obra vai crescendo, tomando proporções, ficando grande demais para qualquer possibilidade de publicação. Por outro lado, se o que eu disse acima acerca da profecia tiver algum sentido, então a resposta pode estar nisto: escrevemos porque existe escrever, porque é possível, e não porque é necessário. (Na arte, muitas vezes, a necessidade vem depois da possibilidade.) De repente, essa ideia de que todos os livros já foram escritos revela o seu aspecto de impropriedade, representando, além disso, uma desonra para a poesia. Há uma poesia do passado — a ser lida e venerada —, mas existe conforto em pensar que alguns indivíduos vivos ainda são capazes de escrever  poesia também, e que, tal como há uma poesia do passado, há uma poesia do presente, aquela de quem vive um experiência semelhante à nossa e que não é a mesma dos nossos ancestrais. Os religiosos — que costumam ser mais espertos que os críticos literários — sabem disso muito bem. A graça divina não está restrita ao passado, não é um evento que ocorreu uma vez e não ocorrerá mais, mas continua atuando no mundo, inspirando e convocando pessoas para algum tipo de missão. Trata-se, pois, de uma sabedoria útil, que deveria inspirar os poetas. Eu, que não sou religioso, presto atenção a essas coisas, pois sei que há nelas uma verdade profunda. A poesia não precisa ter uma utilidade, não é uma mercadoria (embora possa ser divulgada e distribuída mediante recurso a certos objetos — chamados livros — que são vendidos no mercado e estimulam a circulação do dinheiro). Mas é fundamental, por assim dizer, e essencial, porque surge de uma experiência fundante da linguagem, de caráter ancestral — configurada na forma de uma luta dos seres humanos para dar nomes às coisas e dar palavras à vida, entendendo-se a linguagem como um elemento básico do ser em sociedade e do ser consigo mesmo. Isso não é pouca coisa, como se vê, e dá uma ideia clara da dimensão e da importância de tal experiência, bem como das responsabilidades e dos compromissos que recaem sobre aqueles que a ela se entregam.

 

Uma avalanche caiu sobre nós nesses biênio 20-21. De que forma tem sido viver tudo isso e qual a lição poderemos tirar de tudo isso, se é que é possível alguma lição que não a tristeza e o desemparo por tantas perdas?

 

RS: Há muitos aspectos a serem observados quanto a essa pergunta, mas dois me parecem centrais: o político e o sanitário. No plano político, é o que estamos vendo aí, com as elites econômicas, políticas e jurídicas brasileiras se desnudando em praça pública e deixando patente, para todos verem, o seu lado mais cruel e predatório. Vide, para se ter uma ideia, as tais “reformas” que vieram na esteira do golpe de estado de 2016 protagonizado, ai de nós!, por um indivíduo que, inclusive, teve a iniciativa de publicar um livro de poesia (provando assim que a poesia, tratada sem seriedade ou compromisso, costuma não ter nenhuma repercussão para a consciência moral dos indivíduos). Falo das reformas trabalhista, previdenciária e de quantas outras surgiram e ainda surgirão no contexto dessa loucura que acometeu a elite política da Nação nos últimos anos, chegando ao limiar da perversão. (Para se ter uma ideia, recentemente estive a conversar com um amigo meu, que se declarou decepcionado ao descobrir, em véspera de solicitar sua aposentadoria, que ainda terá de trabalhar por mais 7 ou 8 anos, para cumprir as regras impostas — e cruelmente inscritas no texto constitucional — pela nova legislação.) Temos uma política pervertida, por assim dizer, conduzida por indivíduos toscos e desprezadores da legalidade, preocupados mais com os seus ganhos imediatos, como se isso pudesse garantir algum futuro ao país, do que com esse futuro propriamente dito. Já no plano sanitário, vivenciamos essa catástrofe enorme, quase impensável e indizível, de estarmos nos aproximando, neste momento, do número trágico de 600 mil vidas ceifadas pela pandemia — coisa que deveria nos lançar a todos no luto, mas que muitas pessoas vêm tratando com naturalidade e até indiferença, como se isso lhes dissesse respeito. É duro, portanto, e horrível pensar que as autoridades nacionais permitiram, com pouquíssimo esforço em contrário, que 600 mil concidadãos perecessem vítimas do vírus; mas é igualmente medonho observar que isso não cause nas pessoas um impacto mais grave, que elas não saiam às ruas e rasguem suas roupas em lamento, como se fazia antigamente. E mais: enquanto os brasileiros morriam, o que fazia o Congresso Nacional? Concentrava-se em votar privatizações de empresas, em discutir questões de imposto de renda e outras ninharias, cuidando de arranjos partidários, verbas de campanha, com muitos parlamentares vendo na mortandade uma “janela de oportunidade” para a consecução de objetivos mesquinhos. E todo esse desastre vem ainda acompanhado pelo aumento do índice de desemprego — que atinge proporções inéditas na história recente do Brasil —, pela piora abissal nos indicadores sociais, pelo alastramento da fome e da miséria em níveis aterradores no território nacional. Os poetas, os escritores em geral, terão de lidar com isso no futuro, quer queiram ou não, ou serão ultrapassados pela história. Neste momento talvez estejamos atordoados, é o que sei. Porém a necessidade de olhar de frente para o desastre se impõe, porquanto há uma novidade no fato de que esta pandemia — e a tragédia que ela causou — não é vivida às ocultas, sem publicidade, com notícias publicadas em rodapés de jornais. Pelo contrário: acompanhamos o noticiário diariamente, lemos as estatísticas, informamo-nos sobre os escândalos (que, além do costumeiro, no que diz respeito a esses eventos, ganharam agora uma pitada a mais de crueldade, com um aspecto particularmente escabroso que faltava aos escândalos políticos e financeiros usuais, geralmente restritos ao conceito de apropriação sorrateira do dinheiro público). Minha opinião é, portanto, que não cabe aos poetas ignorar tal realidade, continuando a viver como se não fosse com eles, como se nada estivesse acontecendo. Se há uma lição a tirar, é a lição do comprometimento, do envolvimento com o humano e com a vida em todos os seus aspectos, do qual não há como fugir sem uma grande defasagem em nosso arcabouço ético e moral e em nossa condição de indivíduos participantes de uma sociedade. O conforto e o sentimento de superação das perdas virão certamente, mas acredito que só depois de um longo processo de tomada de consciência e de purga, do qual alguns já se compenetraram, mas que para muitos está apenas começando. Que a poesia não se omita — é o meu desejo —, sob pena de perder a sua autoridade profética ou de se converter numa mera tagarelice sobre questões que, afinal, só interessam a seus autores ou às confrarias a que eles pertencem.

 

 

Fale-nos um pouco sobre sua Poesia política:

 

RS: Sobre minha poesia política e socialmente empenhada, sim, também surgiu de maneira fortuita, fora de um projeto consciente, com objetivos duradouros. Mas acontece que nos últimos anos escrevi tantos poemas de ressonância crítica e política, muitas vezes raivosos, geralmente de circunstância, frequentemente humorísticos, com aspecto de crônica de costumes, que não posso ignorar tal faceta — cada vez mais impositiva — da minha criação. Ela se impôs por si mesma, impulsionada pelo arrasto das circunstâncias e pela fatalidade da história. E adquiriu tal dimensão, no contexto da criação de uma obra, que já não sei dizer mais quantos poemas — sonetos, epigramas, etc. — escrevi para abordar questões de política. Se você olhar bem, perceberá que eles compõem um painel, na forma de um longo comentário, sobre o cotidiano do Brasil dos últimos anos, talvez da última década. Por isso, sempre que publico alguma dessas criações, faço questão de estampar, junto com o texto, a data em que foi escrito, bem como geralmente apenso a cada uma delas uma epígrafe retirada de alguma notícia ou artigo de opinião divulgados na imprensa e nos blogues. A intenção é datá-los, para lhes dar um aspecto de epitáfio, e então você perceberá que essa é uma de suas feições mais salientes. Veja, por exemplo, a coletânea Indigestos e purgativos, surgida inicialmente como um comentário satírico aos eventos envolvendo o golpe de estado de 2016 e suas consequências e expandida depois para abrigar o comentário de eventos correlatos, que vieram em seguida, até a eleição de Jair Bolsonaro — coroamento exemplar de todo o processo. É no que deu, parecem nos dizer essas criações. Mas há também os Opinionautas — livro difícil sob muitos aspectos, tanto do ponto de vista de sua interpretação, quanto de sua criação (afinal é escrito em oitava rima), mas principalmente de sua publicação, pois a obra conta, atualmente, com seis livros de aproximadamente 250 páginas cada um, tendo levado mais de 10 anos para ser escrita. É muito, mas não o suficiente, porque a aventura humana pelos desertos da opinião e do equívoco me parece infinita, e assim não há poesia que dê conta de dizer tudo. Mas há também as coletâneas breves, como Lição de economia, Ponte para o futuro e, mais recentemente, Na glote, que abordam os aspectos da vida nacional e, de certo modo, tentam mapear aquilo que eu disse acima sobre a crueldade, a indiferença e o verdadeiro sadismo das elites políticas e econômicas deste país, no que diz respeito à sua atitude diante dos pobres e dos desvalidos. Perverter a política para que, em vez de ser um instrumento de emancipação humana, se torne arma para a espoliação dos mais fracos, como se tem feito nos últimos anos, inscrevendo na Constituição humanista de 1988 artigos que subvertem inteiramente o seu espírito, como a espúria lei do teto de gastos? Se você ler com atenção os 268 sonetos de Indigestos e purgativos, sairá da leitura com uma impressão melancólica, de verdadeira tristeza frente a essa crônica versificada da vida nacional, mesmo escrita em tonalidade humorística. No entanto, creio que isso favorece a experiência da purgação, pois instrui a nossa inteligência e a nossa consciência quanto ao que fazemos ou deixamos de fazer e quanto ao que devemos empreender no futuro. É uma constatação, acredito, mas também uma contribuição, muito modesta, porque toda poesia deve ser escrita sob uma perspectiva de comedimento e humildade, muito embora se possa, sempre, tirar dela uma lição. Isso inspirará em nós e nos outros o desejo de que um dia essas coisas sejam apenas memórias infelizes de um passado remoto, como tem inspirado no seu autor. Cumpre caminhar para um futuro de relações mais humanas e solidárias entre as pessoas, um futuro no qual os cidadãos não sejam só espectadores da vida. Assim, se alguma contribuição puder ser dada nesse sentido, o empreendimento já terá valido a pena, mesmo com todas as suas limitações.

 

Renato Suttana

Dourados, setembro de 2021.

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