Entrevista de Angel Cabeza

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Lanzillotti: A escrita de hoje difere da que havia antes da disseminação das redes sociais?

Cabeza: Uma pergunta de tema abrangente, propício para uma tese e longa discussão. Como tenho poucas linhas para não chatear o leitor, tentarei resumir minha visão e, quem sabe, pontuar alguma coisa que valha.

Sinto que a tecnologia influenciou a forma com que lemos, escrevemos e aprendemos. A língua, assim como a escrita, acompanha a evolução das ferramentas de comunicação que a cercam, seja para o bem ou para o mal. As redes sociais criaram novos escritores, novas formas de escrita e interação. Se você prestar atenção, a forma como lemos os jornais mudou. Salvo os iniciados, a população média deseja velocidade na absorção de informação. Quem hoje folheia um jornal inteiro num domingo? Para interferir nesse quadro, possuímos diversas formas de entretenimento que duelam com o texto. Num mundo onde cada vez mais o nosso tempo é reduzido, o dinamismo e a rapidez na escrita e na leitura são encarados como uma necessidade. E isso se reflete na produção contemporânea de alguma forma. Se hoje uma linguagem que prenda o leitor em poucos segundos é necessária, as redes sociais estão aí para entregar essa possibilidade. O Twitter com seus caracteres restritos, o Instagram e seu apelo visual, o Facebook com sua interação social. Quando você me pergunta se há uma diferenciação, digo que sim, mas também que as formas de produção seguem lado a lado. Temos escritores tradicionais, clássicos, que seguem o tradicionalismo e utilizam as redes como ferramenta de divulgação. E também temos uma literatura mais apelativa, que trabalha muito a fluidez e a facilidade de percepção através das redes sociais. A chamada “literatura de Instagram”. 

Sou um escritor do Século XX que acompanhou o crescimento da tecnologia, mas que ainda não sabe como utilizá-la da forma correta para amplificar a própria voz. Acredito que tenho uma parte analógica e uma parte digital (risos). Mas o que vejo, hoje, é um movimento efusivo, uma produção frenética com muitas linhagens, linguagens (alguma duvidosas) que encontram seus nichos e se propagam. 

Lanzillotti: Seguimos aperfeiçoando a escrita ou houve regressão no cenário  literário?

Cabeza: O aperfeiçoamento é algo inerente à escrita. Todo autor está em constante evolução, seja pelo ofício ou pelo ato da leitura de outros autores, principalmente. Isso não significa que um veterano não possa escrever banalidades, nem que um novo autor não possa criar algo extraordinário. Mas estamos em constante aprendizado, encontrando novos caminhos, e isso jamais implicará em regressão.

Lanzillotti: Aparentemente, a arte da escrita cede espaço a formas menos preocupadas com a linguagem e mais em como ganhar visibilidade? A medida da escrita é o outro ou o escritor deve ser independente?

Cabeza: Kerouac disse que deveríamos escrever para nós mesmos e isso é uma verdade. A escrita não deve obedecer a ninguém. Por mais que o leitor seja a ponta final do processo e hoje exista uma visão distorcida sobre visibilidade X criação devido ao contemporâneo ser líquido, ainda assim a experiência do espanto é pessoal, única. Produzir algo pensando no leitor é não ser verdadeiro com a própria voz. A independência do autor está acima de qualquer mercado, de qualquer gosto, mesmo que esse mercado mate sua voz por não lhe dar fôlego. Por outro lado, as novas formas de se fazer literatura, as novas ferramentas de divulgação, buscam a todo custo o reconhecimento do “clique” e estão preocupadas em apenas agradar seguidores. Essa é a medida de muitas literaturas. Aí, sim, entra em cena a despreocupação com a linguagem, com o trabalho, pois o imediatismo e as facilidades de uma divulgação superficial geram literaturas focadas em popularizar a imagem do autor, mas sem qualquer lapidação da língua. 

Vejo muitos escritores sem prumo, por exemplo. Desejam apenas o imediato, a fama dos grupos, a imagem rasa. Títulos nada significam, mas todos acreditam neles. Tudo é muito volúvel e passageiro. Não imagino, por exemplo, Bandeira ou Gullar preocupados com amenidades além da poesia.

Lanzillotti: Fale um pouco como é editar um livro. Que processos estão inclusos e como deve proceder quem deseja ser publicado.

Cabeza: A edição se resume em ter mil olhos, mil ouvidos, mil percepções e duvidar sempre. É você se doar para que uma ideia tome forma e se transforme em objeto (e quase sempre deixar de lado os próprios livros para investir o tempo que nos sobra no trabalho alheio). 

Atuo com edição faz tempo, mais de 15 anos. Comecei com produção gráfica e passei por todas as etapas (sou da época em que montávamos uma página em laser filme e fotolitos sobre uma mesa de luz para checar o registro das páginas, da prova heliográfica). Editar é entregar uma chave para esse mundo distorcido em que vivemos. É um grito. Difícil? Sim. As pessoas não sabem como funciona e acreditam que há algo de especial, que você vai ler o tempo todo com o olhar despreocupado de leitor. Não é uma festa (embora alguns livros sejam). O mercado é cruel, competitivo. E vivemos uma crise — que não é de hoje, claro —devido ao capitalismo selvagem das empresas responsáveis pelas engrenagens comerciais, ao desmantelamento da cultura que tentamos remendar. O mercado é antipoético. Não há glamour, apenas suor. É preciso gostar ou você se decepciona. Mas não sei fazer outra coisa a não ser produzir livros, seja escrevendo ou editando.

Você perguntou sobre processos, mas seria uma resposta longa. Os processos mudam de acordo com a obra, mas tudo se resume à leitura. Você precisa ler exaustivamente. Hoje, temos uma gama enorme de serviços para autores iniciantes com nomes bonitos, como leitura beta, por exemplo. Nada mais é do que alguém que lê. A base é sempre a leitura e, claro, o texto que recebemos do autor. Um texto bem construído, bem escrito e bem fundamentado ajuda muito a edição. Mas isso não quer dizer que ele não contenha erros. Uma coisa que o trabalho de edição comprova é que todo livro possui erros. Até os melhores escritores erram, seja numa padronização, num pequeno desvio, num pastel ou piolho (termos técnicos para erros de digitação, trocas de vírgulas, frases etc.). Isso não desmerece o autor ou a obra, faz parte do processo do livro e do trabalho da editora. Por isso, temos a preparação, a edição, a tradução, o copidesque, a revisão técnica, a revisão gramatical, a diagramação, a segunda revisão (prova), a prova final...

A dica que posso dar pra quem deseja ser publicado é: produza, jogue fora, produza de novo, jogue fora outra vez, produza mais uma vez. E leia muito, mas muito, pois a base da boa escrita é a leitura. Não se preocupe em lançar um livro sem maturidade.  

Lanzillotti: “Canção para os  teus e outros castanhos” é um livro singular. Convivem nele diferentes amores e formas de enxergá-lo. Indo do amor passional ao amor percebido somente na despedida. Como foi sua concepção?

Cabeza: O “Canção para os seus olhos e outros castanhos” é um livro experimental, pelo menos para mim. Não no sentido profundo da palavra, algo que quebra padrões ou tenta inovar. Foi uma experiência pessoal de linguagem. Embora não tenha esse “rompimento” que o experimental possui, ele carrega uma estética a qual me propus e difere do que eu escrevia na época em que foi lançado. Tem algo de onírico, simbólico, imagético. Uma complexidade de imagens que ousei experimentar na composição. É um livro que fala de amor e suas formas: elevação, desalento, fim. Tentei seguir a ordem de um relacionamento e suas idealizações. O amor é um tema recorrente na literatura. Neruda, Benedetti, Hilda e muitos outros já escreveram sobre amor. Como poderia citar o lugar-comum sem cair na mesma armadilha? Essa foi minha preocupação. 

Também foi minha primeira obra publicada de forma “tradicional”, com o aporte de uma editora. Nasceu ao acaso, de outro livro. Em determinado momento, notei que os poemas do “Canção” destoavam do conjunto dessa outra obra. Decidi trabalhá-los como um projeto paralelo. Enviei então para o meu amigo e também escritor Cláudio B. Carlos, que o editou pela Saraquá Edições antes mesmo de eu enviá-lo para qualquer lugar. 

É um livro bem aceito aparentemente. Deixei que ele seguisse o caminho escolhido. 

Lanzillotti: Grandes escritores morreram sem ter publicações ou com pouco reconhecimento. Isso faz diferença para quem escreve?

Cabeza: Não acredito que faça diferença para a escrita, mas afeta de alguma forma os escritores.

Hilda reclamava por ter uma baixa adesão ao seu nome. Orides estava sempre fora dos grandes círculos e isso a afetava. Clarice sofria a cada crítica que recebia. William Golding ficava deprimido esperando um retorno dos críticos ao lado do rádio. Isso mostra que muitos autores desejam ser lidos, esperam que seus textos influenciem de alguma forma o outro. Não somos ilhas, embora elas sejam necessárias para a criação. Mas não acredito em textos guardados em gavetas até a morte, em diários intocáveis. Escrever para si, como disse Kerouac, é o trabalho, a lapidação. É quando você se debruça sobre a língua, sobre o mundo, e não respeita nada além da escrita. O leitor é apenas a ponta final de um produto. Independente de ser reconhecido ou não, o trabalho do autor deve ser o mesmo. Não há traição. O que não concordo é como tratamos nossos grandes e esquecidos nomes. Claro, você tem o distanciamento histórico, que é responsável por eternizar quem quer que seja. Mas se um autor morre esquecido apesar de seu valor isso diz muito sobre nossa capacidade de percepção. A genialidade que fica é sempre menor do que poderia ser. Não somos mártires, evidente, mas deixamos algum legado que precisa ser reconhecido. Aí nomeamos ruas, homenageamos o escritor em feiras... O distanciamento, aliado ao que percebemos, muitas vezes é necessário, mas triste. É como Nietzsche escreveu: “alguns homens nascem póstumos”. Isso é algo que a sociedade impõe. É preciso eleger uns poucos e esquecer muitos. Certos autores, que não sobreviverão aos 20 anos de obra, sempre foram mais aclamados do que aqueles que resistem ao tempo. E o tempo é um pai triste. 

A verdade é que o morto não liga para as palmas vermelhas dos vivos.

Lanzillotti: Escrever traz paz?

Cabeza: A ignorância, a cegueira, traz paz. A escrita gera diálogos, embates, consciência, por vezes redenção. E quanto mais conscientes, mais as coisas se descortinam, mais indagamos sobre o entorno, mais queimamos a pele. Isso gera desassossegos, sem dúvida. Mas escrever não precisa ser sempre uma tarefa de Sísifo, embora em vários momentos seja.



Lanzillotti: Fale um pouco seu próximo livro a ser publicado.

Cabeza: Tenho alguns projetos em andamento, poemas e crônicas. Um deles se chama “Liturgias de Barro”, diálogo que tenho com deus, escrito aqui com letra minúscula propositalmente. Não sei se algum dia o publicarei, pois são poemas um tanto heréticos, produzidos no meu embate com o divino. Discutem o mito e, muitas vezes, o refutam. O segundo é mais aberto e vem sendo trabalhado há tempos. Tenho dois nomes em mente: “Breviário de desperdícios” e “A aparência inútil dos dias”. São poemas que se preocupam com o humano, com o ínfimo. Sempre acreditei que o poeta deve olhar para o chão acima de tudo. Já o de crônicas, sem nome ainda, está em produção e não tenho nada definido. O que une os poetas de todo o mundo e gerações?

As mesmas coisas de sempre: a leitura, o trabalho, a poesia. Temos alguns círculos que conversam entre si, mas que não possuem a mesma linguagem. Entretanto, as redes sociais encurtaram as fronteiras. Somos lidos por pessoas de outros círculos e isso é algo positivo. Temos contato com novas literaturas, novos pensamentos.



Lanzillotti: O que é poesia? Qual a sua função ou falta de função?

Cabeza: Tem uma frase de Wilde que diz o seguinte: “toda arte é completamente inútil”. Ela responde a esta pergunta. Contudo, faz-se necessário um adendo: “uma inutilidade útil”.

Pegando o gancho, certa vez Gullar disse que possuía um amigo descrente da poesia, mas que o viu escrevendo versos para a mulher que o abandonara. Esse amigo acreditava que a poesia não servia para nada, ao que Gullar, ao vê-lo escrevendo, comentou: “a poesia serve para quando a morena vai embora”.

Com esses dois exemplos quero dizer que não sabemos o que é a poesia. Podemos confabular, mas jamais chegaremos à compreensão real. Falamos muitas coisas, mas é uma experiência particular, algo que não se ensina. É como uma religião, necessita de fé. Não está nos cadernos, nos assentos das academias. É essa inutilidade que nos salva da vida útil, das contas, do banco, da morte. Não depende de nada para existir. Nós é que achamos que sabemos algo sobre ela; acreditamos que a dominamos. Não há explicação. O poeta estuda, trabalha, mas não consegue defini-la em sua totalidade. Tentar explicar o que é a poesia seria como invadir o Monte Olimpo.

Sua função é justamente não ter função. É estar ali para quando precisarmos de algum alento. É uma falsa desnecessidade. Parafraseando Nietzsche, “sem poesia a vida seria um erro”. Pelo menos para mim.




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