ENTREVISTA DE MIGUEL SANCHES NETO

 Por Luciano Lanzillotti




Lanzillotti: Chove sobre minha infância é um livro de memórias e ao mesmo tempo um romance de formação intelectual. O que permanece desse livro em volumes como Um amor anarquista?


Sanches Neto: Sou um ficcionista que busca criar uma linguagem com densidade biográfica. Entendo a literatura como um processo de religamento com o real pela invenção. Então, mesmo em Chove sobre minha infância, onde personagens, espaços e fatos estão muito próximos da minha experiência pessoal, há uma força centrífuga que empurra o livro para fora de sua origem. Em Um amor anarquista, usei o modelo do romance histórico, que é por natureza um idioma de afastamento do tempo presente, para obter um efeito inverso – há uma força centrípeta, que une a minha experiência biográfica a um episódio distante no tempo e no espaço. Contei com minha experiência do meio rural para criar um ambiente falsamente realístico para a história da colônia anarquista. Este é um livro biográfico na medida em que o cenário pertence muito mais à minha experiência de agricultor, de técnico agrícola, do que a pesquisas históricas.

Lanzillotti: Atualmente diversos escritores se tornaram professores universitários, como você, por exemplo. O que há de bom e de ruim nessa relação entre a liberdade criativa e a Universidade?


Sanches Neto: O bom é que a Universidade pública permite que tenhamos uma independência de trabalho, e muitas vezes podemos fazer coincidir a nossa preocupação de criador com a nossa atividade de magistério. Leciono principalmente literatura brasileira contemporânea, então posso me aproximar como escritor do universo da produção literária do país. Isso me dá um convívio mais intenso com a literatura, permitindo que eu estude as principais obras da nossa língua. E a profissão de professor me coloca dentro de situações sociais reais, sou apenas um funcionário que tem deveres, que se relaciona com pessoas, que cumpre tarefas. Não sou o artista isolado das situações de vida, e isso me ajuda na hora de escrever meus livros, pois me dá uma percepção mais fiel da existência. O lado ruim de ser professor é que as obrigações de trabalho tiram muito da energia que deveríamos dedicar à obra em que trabalhamos. Só posso escrever romances nas férias, quando sou 100% o escritor. Apesar disso, minha relação com o magistério é tranquila. Não quero outra profissão.

Lanzillotti: Miguel Sanches Neto é também poeta. Qual o panorama atual da poesia brasileira?

Sanches Neto: Esta é uma resposta que não pode ser dada em uma entrevista, precisaria do espaço de um ensaio ou mesmo de um livro. Em linhas gerais, podemos dizer que a poesia brasileira é rica, tem várias linhagens, da experimentalista à lírica, da marginal à hermética, e que esta diversidade é saudável para o sistema. No centro do campo de poder, no entanto, está uma poesia mais modernista, um discurso meio antiquado de modernidade, que valoriza as transgressões como única forma de se obter renome. Não sou contra esta concepção, apenas acho que ela não reflete a diversidade da produção nacional. Como poeta, estou muito preocupado em usar os meios da prosa para fazer poesia, numa volta à narrativa, ao romance em linguagem poética, que é uma tradição que não exclui o leitor comum.
Lanzillotti: Li há algum tempo uma crônica sua falando sobre a dificuldade em se escrever corretamente. Quais os dilemas diante da folha em branco?

Sanches Neto: Não tenho dilemas diante do vazio anterior à escrita. Sou um escritor que só senta para escrever quando o texto – de prosa ou de poesia – já está devidamente elaborado e reelaborado na minha mente e em minha sensibilidade. Então, escrever é mais fazer um download, é baixar o arquivo. Escrevo muito rapidamente, mas antes passo um longo período de convivência com o texto. Claro, isso vale para mim, não vale para todo mundo.

Lanzillotti: Você fez a sua graduação em uma Universidade particular e os cursos de Pós-Graduação em instituições públicas, entre elas a UNICAMP. Há alguma diferença entre essas instituições, entre seus alunos e professores?

Sanches Neto: Há uma padronização geral dos alunos de nossas universidades. Não vejo grandes diferenças. O que separa as instituições não é a sua natureza, mas o perfil administrativo delas. Há universidades que investem mais em bibliotecas, em bolsas, em estruturas de pesquisa e de pós-graduação. Estas são as melhores para os alunos e para os professores. Há mais espaço de trabalho. E de aprendizagem.


Lanzillotti: Haja vista a tentativa histórica de separação, você acha que isso ainda permanece ou é balela?

Sanches Neto: Não. Isso não existe como projeto coletivo, talvez apenas como delírio de alguns grupos. O Brasil é um só. Em uma cidade vizinha à minha, Prudentópolis, todos falam ucraniano, há até um jornal nesta língua, mas todos se sentem brasileiros. Sobre esta diversidade há um livro do Wilson Martins que recomendo – chama-se Um Brasil diferente. Temos apenas particularidades, mas somos a mesma pátria, com os mesmos dilemas.

Lanzillotti: Sei de sua estreita relação com os novos meios de comunicação e escrita. Fale um pouco sobre a função da internet para o escritor de hoje.

Sanches Neto: Sou um usuário do blog e do twitter. Os novos meios de comunicação alteraram o status do escritor. Não há mais o Escritor e o público, como no passado. Todos são escritores e leitores. Eu leio meus leitores. É um processo extremamente fascinante, em que o coletivo vai se impondo sobre as individualidades. Há um idioma artístico que é de ordem coletiva. Não sei no que vai dar isso, mas estou muito interessado em experimentar a criação literária dentro destas novas mídias. Devo reunir minhas postagens no twitter em um livro e estou escrevendo um ensaio sobre o tema. Lanzillotti: Olhando o passado, qual a diferença entre aquele menino que já demonstrava sensibilidade e capacidade de escrita do homem e escritor de hoje?

Sanches Neto: São uma única pessoa. Eu me deixei ficar naquela identidade. Tenho a mesma curiosidade daquela época. Um interesse total pela realidade. Ainda me emociono com as descobertas, mantenho olhos de primeira vez para tudo.

Lanzillotti: Recentemente o Brasil perdeu Wilson Martins, o que joga ainda mais água fria na frágil crítica atual dos jornais brasileiros. Isso é reflexo da falta de escritores, da falta de abertura da imprensa ou de críticos capazes de enxergar o fenômeno literário em toda a grandeza que o compõe?

Sanches Neto: É reflexo de uma falta de interesse pelo outro. Estamos todos interessados demais em nós mesmos, e ignoramos a produção alheia. A crítica hoje é exercida mais pelos leitores, nas redes sociais, do que nos meios de comunicação e nas universidades, preocupadas com a manutenção de posições de status. Os escritores devem fazer também o seu papel de pensar a produção contemporânea, não podem esperar que críticos venham fazer isso, porque não há mais esta diferença de papéis. Pensar a produção é uma tarefa coletiva. É isto que aprendi observando a cultura de crítica espontânea que nasce na internet.

Publicada originalmente por Pipol em 02/06/2010 http://www.cronopios.com.br

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