Entrevista de Roniwalter Jatobá

 




Lanzillotti: Luiz Ruffato constata em artigo que pouco foi escrito em prosa sobre a classe operária na literatura brasileira. Havendo um ou outro autor a se deter no tema, mas, em grande parte, com soluções vistas por representantes de uma classe média distanciada. Seus contos e romance são justamente o contrário. Neles, tal segmento social é colocado no centro das atenções de forma magistral, unindo forma e conteúdo. Como tem sido escrever sobre esse tema em país repleto de grande abismo social?

Jatobá: O escritor mineiro Luiz Ruffato tem sido extremamente generoso com a minha literatura. Além de me colocar como um certo pioneiro na literatura proletária no país, em 2009 ele organizou e prefaciou Contos antológicos (Editora Nova Alexandria, 2009, SP), que, segundo ele, “reúne as melhores histórias curtas do escritor Roniwalter Jatobá, representa um dos melhores momentos da literatura brasileira contemporânea e determina, historicamente, um período significativo da arte no país: a quase ligação simbiótica entre a história recente e a prosa literária. Nestes Contos Antológicos, “o escritor, demiurgicamente, insufla alma aos personagens, cinzela seus rostos, dá-lhes identidade, arranca-os do anonimato a que foram relegados. E essa construção se faz através do alinhavamento de um estilo próprio, reconhecível nas várias camadas das reescrituras a que o autor submete seus livros”.

Acho que dois fatores importantes me fizeram arriscar na prosa com uma literatura que aborda um tema pouco comum entre nós: muita leitura e vivência. Nasci em Campanário, Minas, em 1949. Meus pais eram baianos, estavam ali desde o final da Segunda Grande Guerra, quando buscaram o norte mineiro para tentar a sobrevivência. Eram tempos difíceis, época de desbravamento de uma inóspita região. Quando começou a chegar o progresso, por exemplo o asfaltamento da Rio-Bahia, minha família voltou para o sertão baiano nas proximidades da cidade de Campo Formoso. E essa volta foi importante para mim. Vivendo na casa de um tio, entrei num colégio protestante para fazer o ginásio e, aí, a descoberta da literatura. Nesta pequena cidade, por sinal, havia um oásis cultural. Cinema e teatro. Nunca me esqueço: os jovens, na grande maioria, brigavam para ver quem ia ler primeiro as novidades literárias que chegavam de Salvador. Havia ali um advogado e professor de geografia, Domingo Dantas, que colecionava livros autografados de autores brasileiros. Tinha todo mundo. Ele mandava buscar no Rio de Janeiro. Naquela época, e durante quatro anos, nos esbaldamos de ler Graciliano Ramos, José Lins do Rego e muita prosa americana. Em 1964, terminei o ginásio, mas meu pai não tinha condições de me enviar para Salvador para continuar os estudos. Com quinze anos, a minha perspectiva era trabalhar na roça ou ajudar meu pai, que possuía um velho caminhão. Naquele período da nossa vida, o Ford amarelo servia para meu pai comercializar produtos industrializados (açúcar, bebidas) e também permutá-los por feijão, farinha etc. Fui, então, dirigir o caminhão. Como dizem que no sertão o único guarda de trânsito existente ali são os jegues, que teimam em pastar no meio das estradas de terra, não precisei de habilitação. Fiquei, assim, nessas andanças por quase três anos. O trabalho era agradável e me sobrava muito tempo. Enquanto meu pai cuidava dos negócios nos pequenos lugarejos, eu lia. Foi aí que conheci quase todos os títulos da pequena biblioteca de Campo Formoso e travei conhecimento com os textos de Dostoiévski, Gogol, Kafka e muitos outros.

Depois de servir o Exército em Salvador, vim para São Paulo, em 1970. Aqui fui morar em São Miguel, na casa de uma família, um exemplo de solidariedade. Era fevereiro. Até abril bati muita perna em busca de trabalho. Na Nitroquímica, a maior fábrica de São Miguel, e que empregava quase todo mundo que chegava da Bahia, não tinha vaga. Rodei a cidade inteira até que, um dia, consegui uma vaga de ajudante de almoxarifado na Karmann-Ghia, no ABC. Fiquei três anos empurrando carrinho cheio de peças para a produção. Em 1973, saí e entrei na Abril, como apontador de produção na gráfica. A partir daí, auxiliado pela empresa, fiz supletivo colegial e, depois, pude me formar em jornalismo. Foi na escola que comecei a escrever os primeiros trabalhos. Eram contos e, em todos eles, o cenário era a periferia paulistana ou os dramas dos migrantes na sua vinda, mostrando o abismo social que existia no país entre ricos e pobres, que, infelizmente, não teve nenhuma melhora, mas sim um retrocesso. Enquanto trabalhava na Abril e colaborava em Versus e Movimento continuei a escrever. Aí, um dia, mandei um conto para a revista Ficção, no Rio, e outro para a Escrita, em São Paulo. Ganhei os dois prêmios e não parei mais.

Lanzillotti: De que forma as mudanças de Estado e o trabalho como operário são o mote de suas histórias? Ter se tornado jornalista ajudou ao escritor em que medida?

Jatobá: As mudanças foram importantes, afinal senti na pele as dificuldades das pessoas que abandonam sua família e seu local de origem para se aventurar em lugares desconhecidos. Assim fui me aprofundar nessa temática e elaborar cada vez mais a linguagem, fugindo, claro, do ranço naturalista e buscando uma literatura que olhe a vida de frente. De certa forma, busco devolver ao leitor aquele Brasil que já esteve presente em nossa literatura de ficção, sobretudo a partir dos anos 30, que tanto ajudou na formação de uma consciência nacional. Talvez por isso seja muito próximo à literatura de Graciliano Ramos, que profeticamente relatou em Vidas secas, lançado em 1938: “Que iriam fazer? Retardaram-se temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes e brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos.” Enfim, esses homens fortes e brutos que vieram para a cidade grande são meus personagens.

Sim, fiz jornalismo nas Faculdades Integradas Alcântara Machado (Fiam), em São Paulo, de 1975 a 1978. Na época, trabalhava na Editora Abril como coordenador de redação das revistas infanto-juvenis. Mas, sempre consegui separar o texto literário do jornalístico. Quando tinha dúvida, pensava numa célebre frase do escritor norte-americano Ernest Hemingway, ao lembrar seu tempo numa redação de jornal: “No Kansas City Star se era forçado a aprender a escrever sentenças informativas simples. Isso é útil para qualquer um. O trabalho jornalístico não prejudica o jovem escritor e pode até vir a ajudá-lo se ele cair fora a tempo. (...) O jornalismo, depois de um certo ponto, pode vir a se tornar uma autodestruição diária para um escritor sério e criativo”.


Lanzillotti: Como tem lidado com a pandemia? Que lições ela tem nos dado? O que restará ao final?

Jatobá: Quando me aposentei anos atrás, pensei que teria tempo para escrever e me dedicaria mais à literatura. Ledo engano. Nunca parei de escrever, mas a produção diminuiu. Vivendo durante essa pandemia e tendo que ficar em casa o máximo possível, a produção chegou a zero. Não consigo escrever preocupado com as milhares de mortes, com a minha possível própria morte e a de amigos e familiares, a maioria devido ao descaso de um governo negacionista e, por que não, genocida.


Lanzillotti: Como tem sido a recepção aos seus livros? Você chegou à finalista do Jabuti mais de uma vez. Isso ajudou a ganhar terreno entre leitores e críticos? Como encara tais premiações?

Jatobá: Não tenho muito o que reclamar. Ganhei alguns prêmios, mas o melhor foi o Escrita de Literatura, com o livro Sabor de química, quando estreante dividi o primeiro prêmio com Moacyr Scliar, em 1976. Depois o Jabuti, terceiro lugar com o livro de crônicas Cheiro de chocolate e outras histórias, e finalista em outros anos. Raramente acrescentam alguma coisa a não ser inflar o ego dos autores e, muitas vezes, criar problemas de inveja entre colegas. Crônicas da vida operária, por exemplo, foi um sucesso arrebatador. Foi finalista do Prêmio Casa das Américas, em Cuba, e em menos de meses saíram duas edições. Logo saiu uma edição em capa dura pelo Círculo do Livro. O meu trabalho recebeu muitas críticas, a maioria favoráveis, outras nem tanto. Um jornalista, que editava na época a revista Leia, jogou um exemplar do livro no lixo, argumentando que alguém com esse nome não poderia ser escritor. Um autor, hoje à frente de movimentos homossexuais, se transformou, na mesma Leia, numa feroz crítica de 60 anos, com pseudônimo de mulher e tudo, para desancar no anonimato o meu trabalho. Felizmente, as reações a favor prevaleceram. Os jornais Movimento, Pasquim, Coojornal, O Globo e Jornal do Brasil publicaram notas positivas. Por outro lado, hoje, há muitos futuros professores fazendo teses de mestrado e doutorado sobre o meu trabalho.


Lanzillotti: Conversando com renomado escritor, dizia das dificuldades encontradas em publicar nos últimos anos. Tem a mesma percepção?

Jatobá: Sim. Nos anos de 1970 e 1980, existiam no país muitas revistas e jornais literários que abriam espaço para os autores novos. Hoje não há mais nem os cadernos culturais dos jornalões. Com a crise do mercado editorial advinda pela pandemia e o colapso das mega livrarias, a situação ficou pior: médias editoras pararam de publicar e as grandes publicam em conta gotas, sempre privilegiando autores conhecidos e com venda certa.



Lanzillotti: Os livros vêm passando por constantes ataques. E o que deveria ser o centro de um país em desenvolvimento, vai sendo achacado, desestimulado. O resultado é a diminuição em toda a cadeia produtiva. Está mais difícil escrever hoje do que algumas décadas atrás?

Jatobá: O que esperar de um governo como o atual que coloca como prioridade armar a população e, ao mesmo tempo, diminui os investimentos em educação? Alguém já ouviu o atual presidente da República dizer que leu um livro? De minha parte, continuo a produzir, buscando devolver ao leitor aquele Brasil que já esteve presente em nossa literatura de ficção, sobretudo a partir dos anos 30, que tanto ajudou na formação de uma consciência nacional.


Lanzillotti: Como vê a literatura que é produzida hoje? O que acha que ficará?

Jatobá: Vamos indo. Há coisas boas. O bom do trabalho artístico é que ele precisa de maturação de décadas. Um sucesso momentâneo não quer dizer que certa obra ficará na história. Por isso, não devemos ficar à mercê da glória repentina. Trabalhar é preciso. E acredito seriamente na literatura. O ato de ler poesia e prosa é uma das ocupações mais estimulantes e enriquecedoras do espírito humano. Para o escritor Mario Vargas Llosa, a literatura é uma atividade insubstituível para a formação de cidadãos na sociedade moderna e democrática. “Por essa razão, ela deveria ser semeada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas educacionais”, diz o escritor peruano. “Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo excludente do que esta verdade que sempre surge na grande literatura: todos são essencialmente iguais.”


Lanzillotti: Você esteve à frente de entidade de classe que reúne escritores. Uma espécie de "sindicalização" é uma saída para a arte? De que forma isso pode contribuir para a melhoria do cenário intelectual?

Jatobá: Não acredito. Fui diretor da UBE nos anos de 1990 e não creio que nenhuma entidade de classe vai melhorar o cenário do escritor na vida brasileira, já que não temos vínculo empregatício com ninguém. Além disso, o escritor é, como em algumas outras artes, um ser solitário e para ele só importa vencer o medo da página em branco. E assim resisto escrevendo sobre a vida que conheci como nordestino migrante, motorista de caminhão, trabalhador de construção civil e fábrica, buscando condições melhores em São Paulo. Não tive nenhuma intenção de tratar cientificamente fatos e personagens, não levantei teses sociais. Minha partida, claro, foi a experiência real, porém não escrevi como historiador, antropólogo ou sociólogo, muito menos cultivando correções políticas – e sim como escritor. Anos depois, tenho quase certeza que as histórias resistiram, sim. Talvez porque busco uma literatura que olhe a vida de frente. Escrevo devagar. Sigo sempre o conselho de Otto Maria Carpeaux, que dizia que o estilo é a escolha do que deve ficar na página escrita e o que deve ser omitido. É a escolha entre o que deve perecer e o que deve sobreviver. Na literatura é preciso muita paciência até encontrar o tom e o ritmo certos. Um exemplo é a novela “Tiziu”, presente no livro Paragens. Como você sabe, tiziu é um pássaro que se urbanizou, vive de restos de comida nas grandes cidades. O título, na verdade, é simbólico. É a história de Agostinho, que depois de 25 anos em São Paulo volta à sua terra de origem. É a história de um homem que vive a dura e descarnada história vivida por milhões de brasileiros, aqueles que nascem e vivem bem longe até mesmo dos mínimos direitos de um cidadão, lutando duramente pela sobrevivência e sonhando sonhos que, embora pequenos, não têm qualquer chance de realização. O enredo, no entanto, é a volta. A volta para encontrar a si mesmo em um lugar que não é mais o mesmo. Veja o que acontece quando Édipo volta a Tebas, quando Orestes volta a Argos. Nos gregos, em toda literatura de ficção, o ser humano não quer voltar, mas volta. É empurrado para trás, para buscar a si mesmo, e o que encontra? O nada.


Lanzillotti: De que forma a internet e as redes sociais modificaram sua relação com a escrita?

Jatobá: Para pior. Se o computador veio para modernizar a máquina de escrever, a internet e as redes sociais chegaram para me distrair com coisas boas, mas na maior parte bobas. Vivendo um marasmo parecido, foi por isso que, no final de 1994, publicamos um livro chamado Contralamúria, com o selo de um grupo ao qual eu pertencia, o Pindaíba. Fizemos uma edição de 75 exemplares e reunimos os cinquenta mais representativos poetas e contistas de São Paulo. Edição esgotada e pronto! Alguém pode dizer: coisa de marginal. Era e não era. Era, sim, o contra-espelho debochado de uma indústria cultural dependente de “ismos” de plantão. Contra uma minoria alfabetizada de intolerância, preconceitos e desonestidade e uma maioria analfabetizada de saúde, educação, comida e cultura. Como é hoje, ou muito pior, o nosso país. Como escritor a melhor forma de se engajar na defesa da cultura é trabalhar, e que a arte produzida seja expressão da vida brasileira.

 



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