Entrevista de Armando Liguori Junior

 



Armando, em que sentido a atuação dramática e a poesia se complementam? Há algo específico a cada um desses segmentos artísticos ou não?

 

AL: A arte dramática é a literatura do diálogo por excelência. 

 

O que o ator, o diretor e mesmo o espectador tem a sua frente é apenas uma parte do que o texto dramático é.

 

Durante a montagem os atores e diretores precisam descobrir quem são os personagens, como se relacionam, o que eles pensam e não é falado nos diálogos, o que está nas entrelinhas (e muito está nas entrelinhas), imaginar/criar quem eram esses personagens antes do início da história (o passado de cada um) e assim por diante.

 

A maioria das peças são recortes na vida de um grupo de personagens, mas tem o antes e tem o depois. Se fosse um romance, ou mesmo um conto, tudo isso estaria bem detalhado pelo autor que apresentaria as características físicas, emocionais, intelectuais de cada personagem, nos contaria seu passado, seus medos, seus traumas, seus desejos e assim por diante.

 

O teatro tem esse elemento que me fascina que é a descoberta.

 

Um mesmo personagem interpretado por atores diferentes trará nuances diversas.

 

Um mesmo texto dirigido por diretores diferentes apresentará ao público encaminhamentos e propostas diferentes.

 

O texto teatral abre possibilidades para interpretações e para a imaginação. E tudo isso por meio de diálogos. A arte dramática, na minha opinião, é a mais viva das literaturas.

 

Respondendo sua pergunta eu poderia dizer que no meu trabalho as duas formas de escrita (arte dramática e poesia) se complementam.

 

Muitos dos meus poemas, senão todos, são feitos mais para a boca que para os olhos. Mais para a voz do que para o silêncio. E neles está presente esse diálogo que busco com o personagem LEITOR.

 

Amo a coloquialidade. Meus poemas são intencionalmente conversas (adoraria ouvir as réplicas dos leitores, mas isso infelizmente não é possível).

 

Outra característica que os meus poemas têm e que converge com a escrita dramática é a narrativa, gosto de contar história no formato de poemas livres.

 

Na minha formação a escrita dramática veio antes da poética. Lembrando que DRAMA no caso é AÇÃO e não apenas algo comovente e que envolve sofrimento que é o que normalmente se entende por drama hoje

 

A poesia é muito recente na minha vida como escritor, mesmo tendo sido desde sempre um leitor voraz de tudo que me caia nas mãos desde a adolescência. Mas a poesia entrou na minha vida por meio da MPB.

 





 Nos versos

 

"Sou um poeta-primata

E, detrás das grades das palavras,

Observo os visitantes desse zoológico humano

Para, depois, escrever alguma poesia barata."

 

O que mais me chama a atenção é algo bastante comum em sua escrita, ao que me parece um dos traços gerais de sua escrita, o humor referente a si e ao mundo. Contudo, o poema revela certo desconforto em relação às segmentações literárias? Existem e como são?

 

 

AL: Sim. Humor sempre.

 

Realmente muito do que escrevo tem esse viés divertido, mas sempre crítico.

 

Gosto de rir de mim mesmo.  Das minhas limitações como poeta. E são muitas. Já que não tenho uma formação acadêmica, não sei de métricas, de teorias etc. Sou mais intuitivo.

 

Como disse anteriormente meus poemas são feitos para voz, portanto, neles ritmo é algo muito importante. O leitor precisa estar livre para ler do jeito que preferir, afinal, metade do poema é de quem escreve e metade de quem lê.

 

Quando mais jovem, me assustava o enquadramento, formatação de muitos poemas que, na minha cabeça, direcionavam a forma como eu deveria ler. E quando eu lia, parecia que tinha algo quadrado na minha boca, batendo entre os dentes. Não conseguia incorporar aquele escrito ao meu ritmo e isso criava uma dificuldade a ser superada, e que nem sempre era.

 

Não. Não existe desconforto com relação a outras segmentações poéticas. Tudo o que eu falo é uma grande brincadeira. Tenho amigos sonetistas fantásticos ou amigos que escrevem textos mais elaborados e acadêmicos que me deliciam e a todos admiro muito.

 

Cada um precisa buscar a sua linha de trabalho. A minha formação vem das minhas leituras. Faço uma poesia do dia-a-dia. De pequenas reflexões e algumas poucas conclusões.

 

 

 

 


 

 

Tanto perdemos e tantos perdemos, não apenas na pandemia, mas antes e depois dela continuaremos perdendo, sobretudo por estarmos em um país fraturado, violento e repleto de contrastes.

Gosto muito do poema "Quarentena", em que se diz "Dependente químico/ Físico, lírico/ Da poesia". Há solução para o humano, fora da arte? E para o poeta, alguma solução longe da poesia e quais seriam?

 

 


AL
: Não tenho a visão romântica de que a arte é a salvação do mundo. Sei do seu poder de transformar os seres humanos. Mas nosso mundo precisa de muitas soluções que antecedem a arte em prioridade: precisa do exercício pleno da cidadania, precisa de igualdade de oportunidades, precisa de igualdade de acesso a tantas coisas, precisa alimento para todos, teto para todos, educação para todos, saúde... enfim. 

 

A arte começa a ser solução à medida que essas necessidades básicas atendidas.  Aí ela trará a reflexão, a beleza, a imaginação, o encanto, a discussão de temas importantes e, por meio de tudo, isso, a transformação. Para transformar o humano é precisa que exista o humano.

 

Quanto ao poeta, não posso responder por todos, mas no meu caso A POESIA ESTÁ EM TUDO não apenas nos poemas. O poeta pode muito bem ficar longe do poema, mas nunca estará longe da poesia que pode aparecer num gesto, num olhar, numa dança, numa pintura, num animal doméstico... enfim...

 

 


 

Em " Toda saída é de emergência", sua recente publicação de poemas, dois segmentos se entrelaçam e me chamam a atenção como temas poéticos: a casa, o tempo, suas relações com a solidão e a passagem da vida. Amadurecer facilita ou dificulta o fazer poético?

 

AL: Este livro é resultado desse período em que ficamos confinados em nossas casas. E, de repente, nos vimos com tempo para olhar ao redor de cada ambiente, a olhar para cada um de nossos familiares de maneira mais constante, a ver o próprio Tempo sob outros aspectos...  Nesse período me propus a escrever um poema por dia... no final teve muita porcaria, mas também algumas coisas aproveitáveis que eu separei para este novo livro.

 

A casa sempre foi um tema recorrente nos meus escritos. Casa enquanto território. O tempo também tem sido recorrente. Acho que todos nós que escrevemos acabamos escolhendo alguns temas que vão se repetindo, mas que em função do momento vivido acabam ganhando cores diferentes.

 

Nesse período que vivemos, todos fomos um pouco Sísifos no cotidiano, a grande pedra que carregamos foi a do isolamento.

 

Para mim, foi um tempo de muita reflexão.

 

Às vezes, sentado numa cadeira olhando para o assoalho, me vinha à mente a relação social/econômica dos que pisam e dos que são pisados e eu fazia um poema.

 

Almoçando na cozinha e vendo uma folhinha da seicho-no-ie me vinham reflexões sobre coisas que sempre estiveram em nossas vidas e nunca paramos para pensar sobre e vinha um poema

 

Olhando meu cachorro imaginava que a solidão também é um bicho de estimação e transformava em poema....

 

Todo esse livro foi feito dessas coisas vividas, refletidas e vistas pelas mídias...

 

Impossível não falar do dia em que o Papa rezou uma missa sozinho numa praça enorme.... ou da perda de um dos meus ídolos de infância: Daniel Azulay.... impossível não falar do descaso que alguns empresários tiveram com o humano no início da pandemia... e assim por diante.

 

Amadurecer facilita a reflexão. Mas, quanto ao fazer poético, dificulta, pois, como poetas estamos sempre buscando evoluir na nossa escrita, tentando não reproduzir formas já usadas... e isso é difícil.

 

 




 

Suas constantes leituras, sobretudo as públicas, de poetas os mais variados, o faz perceber de que forma a produção nacional na atualidade? Qual ou quais características principais dos versos que percorrem o Brasil?

 

 

AL: As leituras diárias que faço já há 4 anos ampliaram e muito meu contato com o que vem sendo produzido (e que já foi produzido ao longo da história) por escritores do Brasil e do exterior.

 

A primeira constatação é que somos muitos. Muitos mesmos os que nos dedicamos a escrever.

 

Nesses tempos de pandemia, conheci pela mídia social poetas de todos os estados brasileiros e alguns de Portugal, da Argentina, da África, e li poemas dos mais diversos locais do mundo.

 

A segunda constatação, é que tem muita coisa de qualidade.

 

A terceira constatação, é que a literatura está cada vez mais diversa: com vozes de todas as etnias, vozes de todos gêneros, de todos os lugares, de todas as idades, vozes de classes sociais diversas, vozes da rua, vozes dos guetos, vozes das mais diversas realidades, condições, enfim. E, em muitos casos, mais que vozes, gritos. Por que a poesia quando quer gritar, sabe como fazer.

 

Não saberia te dizer quais as características principais dos versos que correm o Brasil, mais eu percebo que a poesia é mais individual do que regional.  O poeta fala daquilo que lhe atinge: pode ser um preconceito, uma violência, um ato de racismo ou sentimentos como solidão, medo, incompreensão, entre outros... e muitos, talvez todos ainda falam e falarão de amor, de tempo, de vida, esses temas mais recorrentes da literatura e poesia ao longo do tempo. 

 

Somos mais ligados pelo que nos faz humano do que por viver nessa ou naquela região do Brasil... mas posso estar falando uma grande besteira... são apenas achismos.

 

A poesia é tão diversa quando os poetas que as escrevem.

 




 

"Toda saída é de emergência" foi editado de forma independente, bela edição feita pelo Matheus Peleteiro, o que é algo bastante comum hoje em dia e creio muito saudável e valoroso. Como vê essa tendência, o mercado editorial e as premiações?

 

 

AL: Acompanho o trabalho de Diego Moraes, escritor do Amazonas ... e quando adquiri seus mais recentes livros vi que quem tinha feito as edições havia sido o Matheus Peleteiro.

 

O Matheus eu conhecia, como escritor, e também de suas lives e podcasts, inclusive ele uma vez me convidou para ler um poema de Niels Hav e por isso tinhamos uma ligação via face e insta. Mas não conhecia esse seu lado editor.

 

Mandei uma mensagem para ele elogiando a edição dos livros do Diego e perguntando se ele teria interesse em me auxiliar na produção do meu novo livro. Enviei os originais, conversamos a respeito, ele disse que topava, me deu uma estimativa de preço, me apresentou a Gabrielle Sodré, artista gráfica com quem conversei e que fez essa capa que gosto tanto.

 

E tudo correu muito bem..... vale lembrar que durante a pandemia muitos dos meus gastos tinham sido reduzidos: não comprei roupas novas, não comi fora, não fui a teatros e cinemas... enfim.... peguei esse dinheiro e fui economizando sem saber muito para quê.... e quando surgiu a oportunidade de produção do novo livro... essas economias  vieram a calhar.

 

Gostei muito de trabalhar com o Matheus Peleteiro. Amei o resultado final do livro. Matheus é um escritor afinado, refinado e de grande inteligência. Sem contar que temos algumas afinidades literárias. Durante todo o processo foi de uma delicadeza, de uma elegância e de um respeito incrível para com o meu trabalho e comigo.

 

Antes disso eu já tinha oferecido este livro para a Editora Patuá responsável pela belíssima publicação do A POESIA ESTÁ EM TUDO. Mas em função da pandemia e da queda na venda de livros e dos muitos projetos que estavam em andamento na editora, o Eduardo Lacerda, me disse que no momento não conseguiria se comprometer com novos projetos, e que entenderia se publicasse com outra editora nesse momento.

 

Não saberia avaliar as tendências do mercado editorial... mas no meu caso, as duas experiências foram muito válidas.

 

A experiência com respaldo da Editora mantem meu livro no seu catálogo e sempre ajudou a me inscrever nos prêmios literários, me mantendo informado de tudo.

 

E a experiência individual, que está me possibilitando um contato mais direto com os leitores, na venda um a um, e também, a de poder oferecer o livro por um preço mais em conta, já que ao contrário de uma Editora, não tenho toda uma estrutura de funcionários, aluguéis etc para sustentar.

 

 

Em ...


Não saber

Talvez seja

O meu melhor

Mas

Sou humilde

Não saio por aí

Exibindo minhas

Inconsistências



O belo poema anterior trata de algo que me parece de suma importância e que vem se tornando, em tempos de redes sociais, algo incomum: a simplicidade. Como vê a crescente importância das redes sociais, em detrimento das relações mais próximas e reais? Há ainda espaço para a simplicidade em meio a egos tão inflados?

 


AL: Somos vaidosos por natureza.... em especial todos os que mexemos com arte: literatura, teatro, cinema, música.... precisamos de aplausos, precisamos de público/leitor, precisamos de afagos. Parece, muitas vezes, que esses são combustíveis para que o artista continue o seu caminhar.

 

Acho que nem poderia ser diferente, o trabalho do escritor se completa no leitor, o trabalho do ator no público... são ofícios que dependem do outro lado da balança para se equilibrar. Mas há de se evitar os exageros... e isso tenho buscado fazer no decorrer dos anos.

 

Tento fazer um trabalho em que eu acredito e torço para que o público/leitor que tiver contato com ele possa refletir sobre minhas propostas e talvez até gostar.

 

Mas se tem uma coisa que o teatro me ensinou é que o fracasso é tão importante quando o sucesso, são apenas duas faces da mesma moeda.

 

Faça seu melhor para quem foi te assistir, independentemente de que sejam 10 pessoas ou 500 pessoas na plateia. Quem está lá, saiu de casa, pegou condução, pagou o ingresso e merece o seu melhor. Da mesma forma quem comprou o seu livro. Se um único  espectador / ou leitor / sair do teatro ou do livro refletindo a respeito do que foi dito, isso já é sucesso.

 

Quanto as mídias sociais.... ainda tem muito para se estudar... acho que o que poderia falar aqui são as obviedades.

 

Ela é o inferno e o céu na rede.  Ela destrói mais que constrói.

 

Ela afasta o contato humano, mas amplifica a possibilidade de contatos que nunca teríamos se não fosse por elas.... acredito que sem as mídias sociais, conforme já disse anteriormente, eu não teria conhecido nem no tempo de uma vida, o tanto de gente interessante que eu conheci nesses dois anos de pandemia participando de saraus, conversas, debates, encontros. E provavelmente não estaria dando essa entrevista para você Luciano. A quem agradeço, profundamente pela oportunidade.

 

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