Entrevista de Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 


Entrevistado: Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais pela UNESP-Araraquara e editor do site www.criticapontual.com.br e professor de Filosofia e Sociologia no Colégio Futuro/COC e na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. E-mail: gilcriticapontual@gmail.com

 

Fale um pouco de sua trajetória em relação à escrita e leitura.

 

Compreendo minha relação com a leitura a partir do meu processo de alfabetização realizado em casa e, em virtude disso, já cheguei à escola sabendo ler e escrever e, desde então, tenho vivenciado o mundo da leitura, levando em conta o que o escritor francês Marcel Proust (1871-1922) diz num pequeno livro dedicado à arte da leitura. Segundo ele, os livros nos abrem portas que, sem a leitura dos mesmos, não seriam possíveis. Sendo assim, a minha relação com o universo da leitura e, por conseguinte, com os livros é de mais de quatro décadas, tendo se iniciado quando acompanhava minha mãe no trabalho dela. Ela fazia faxina numa biblioteca municipal e, no período da manhã eu estava na escola e na parte da tarde ficava numa sala do prédio em que limpava. Numa bela tarde, uma funcionária chegou e perguntou se eu sabia ler e escrever. Diante da afirmativa, me inquiriu se desejava conversar com algum escritor. Estranhei, mas disse que sim e aí ela me levou para uma sala onde ficavam os clássicos da literatura brasileira, dizendo que ali naquele espaço havia bastante conversa para uma tarde inteira. Desde então, quando não estou lecionando, estou dialogando com algum escritor, entre outros, Machado de Assis, José de Alencar e outros das novas gerações que fazem parte do meu acerco particular. Tenho o hábito de ler vários ao mesmo tempo, desde os franceses, italianos, alemães, espanhóis, russos, norte-americanos, e agora as enunciações que chegam do continente africano. É a partir dessas enunciações literárias e análises sociológicas, filosóficas dos fenômenos sociais que produzo meus textos, sejam em formas de crônicas, contos, enunciações longas e até uma arriscada no mundo da poesia.

 

Os textos de seu blog aliam literatura e realidade crítica, mas vão além disso. Fale um pouco do grande repertório de formas e assuntos tratados?

 

Os meus textos estão diretamente ligados aos meus objetos de pesquisa: entender a realidade brasileira e de como ela é representada através da literatura. Neste sentido, minhas enunciações mesclam história, romances, crônicas e outras obras das ciências sociais e do pensamento social brasileiro. Em minha leitura dos fenômenos sociais do presente, sempre busco respaldo num passado que ainda não deixou de existir. Por exemplo, tratar do racismo que campeia a Nação atualmente, significa reconstruir a sociedade em que ele emerge com total força, entretanto, não aparece como ele realmente é, já que o cidadão que se acha mais humano do que seu semelhante por conta da tonalidade da pele, saldo da conta bancária e outras adjetivações, começando pelo nome, nega ser racista, usando inclusive a famigerada afirmação que “até tem um amigo preto”. É comum ouvirmos em diversas pesquisas que o brasileiro costuma dizer não ser racista, mas tem um amigo que é. Interessante, pois de acordo com Aristóteles em seu livro Ética a Nicômacos, a amizade se constrói a partir daquilo que não se têm, portanto, esconder seus preconceitos atrás de um amigo imaginário somente evidencia que o comportamento racista está contido no ser em si, pois se não é racista como pode sustentar um relacionamento de afetividade com quem é? Claro que essas abordagens devem ser feitas com a devida acuidade, objetivando apenas esclarecer e ajudar os meus leitores a refletirem sobre o mundo que se tem e olhando para frente em busca da sociedade que se pretende edificar a partir dos comportamentos pretéritos, levando sempre em conta alguns pontos do pensamento kantiano sobre os imperativos que enfocam o dever visando o devir, ou seja, que cada ação seja praticada levando em conta que deva ser universalizada. É como no conto de fadas da Branca de Neve e os Sete anões quando a madrasta pergunta ao espelho se há alguém mais bela do que ela no reino. É interessante focar no pronome possessivo e aí estou pensando no pronome que foi traduzido para a Língua Portuguesa: o possessivo, já que ela diz “espelho, espelho meu”. Se o objeto reflete a imagem dela, então, não haveria como ele dizer o contrário. Numa interpretação bem ligeira, é possível dizer que o reflexo da madrasta seria o do racismo brasileiro escudado, sobretudo na ausência de cidadania, pois quando do fim do escravismo, não se seguiu à lei que extinguiu o cativeiro no país, outras medidas que incorporassem o elemento africano à vida nacional. Desta forma, sem os direitos sociais e políticos, restou ao elemento africano liberto ocupar o submundo dum país que estava em via de sepultar a Monarquia, enquanto construía os alicerces para se tornar uma República sem incorporar os ex-escravos. O romance O cortiço, de Aluísio Azevedo (1857-1913) é uma prova desse meu olhar e também o enredo de Bandeira negra, amor, do jornalista Fernando Molica. A partir desta ausência de cidadania no presente como consequência desse pretérito, entendo que é possível compreender o eterno ressurgimento do populismo, seja ele na forma assistencialista, economicista ou religiosa. São essas abordagens que enfatizo em meus textos, apresentados no formato de crônica, artigos, contos e outras enunciações, muitas delas estão disponíveis no meu site Crítica Pontual.  Foi pensando nessas questões raciais que criei uma personagem que tenta, através de seu comportamento racional visando um fim, conforme dizia Max Weber (1864-1920), demonstrar que, em virtude de nossa herança senzaleira, o racista quer sempre culpar os descendentes de escravos pelas desigualdades sociais. Numa imagem direta: almejam colocar o açoite nas mãos dos pretos, os culpando pelas suas condições de descendentes de africanos e, por conseguinte, de miserabilidade. Num texto publicado na edição 55 da revista Bis, editada pelo Sindicato das Escolas Particulares do Estado de Minas Gerais, trato dessas questões enfocando a ideia de que o racismo é consequência de um projeto político construído pela elite que gravitava em torno do trono e posteriormente da República brasileira.

 

Qual a medida entre boas literaturas produzidas e o meramente panfletário e sem qualquer valor estético?

 

Classificar o que é boa literatura ou não é algo complexo, principalmente pelo fato de ser a leitura um ato solitário, mesmo que as pessoas possam comentar e compartilhar as impressões que ficaram após percorrerem determinadas páginas, como por exemplo, Dom Casmurro, Irmãos Karamaozivski, Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, Afinidades Eletivas, Odisseia, Ilíada ou Jaques, o fatalista e seu amo, entre outras narrativas. Desta forma, creio que é preciso olhar o local de fala do sujeito quando este avalia uma obra literária ou artística e com quem está dialogando. Leio de tudo. Existem aquelas enunciações mais demoradas e outras mais rápidas e a velocidade tem a ver com o que o enredo está me oferecendo. Pode ser que naquele momento, a narrativa esteja me respondendo algo que a muito estava martelando dentro de minha consciência. Também costumo dividir as minhas leituras entre aquelas que, de antemão, me dão motivos para percorrer as páginas como por exemplo Incidente em Antares, do Erico Verissimo e Clara dos Anjos e outras como Bandeira negra, amor, do Fernando Molica; O Fazedor de velhos, de Rodrigo Lacerda; Crocodilo, de Javier Contreras e Eu vos abraço, milhões, de Moacyr Scliar. É interessante notar que muitos romances como O avesso da pele, de Jeferson Tenório e O olho mais azul, de Toni Morrison podem nos dizer tantas coisas que ficam conversando conosco por semanas, meses à fio. Então será que podemos chamá-los de textos cânones, como o romance de estreia de Aline Bei, O peso do pássaro morto?


Uma voz literária se faz unicamente pelo desejo de escrever ou crê em uma forma de vocação que, se houver de fato, pode ser trabalhada com leituras e escrita?

 

A escrita é simples: é ter o que dizer e escrever. Neste sentido, todos têm boas histórias para contar, sejam elas baseadas em fatos reais ou numa espécie de vir a ser, isto é, o desejo de que aquilo fosse realmente uma situação concreta e aí penso no que disse Nietzsche sobre o fato de o poeta compor suas enunciações a partir das situações que vivencia em seu meio. Desta forma, escrever é isto: ter o que contar e assim se posicionar através da enunciação se expressando das mais diversas formas narrativas que sejam possíveis: cordel, versos, poemas, contos longos ou breves, romances, músicas, instalações, quadros, enfim, seja usando qual linguagem for, pois o mais importante é comunicar o que se pretende. Se a pessoa que se propõe a conversar com o mundo, escrever um parágrafo por dia, com certeza no final do mês terá um texto de 30 parágrafos, observando sempre a coesão e o que se almejar externar por meio do enredo.

 

O quanto retrocedemos em termos culturais e identitários como brasileiros?

 

Parece-me que para avaliarmos o quanto o país retrocedeu nesses últimos anos, é preciso entender em que ponto estávamos quando a sociedade brasileira optou pela estagnação e o ostracismo, principalmente nos campos culturais e identitários a partir dos quais posso afiançar que o salto para trás nos levou aos tempos medievais. Feita essa leitura, penso que uma Nação como a nossa, com fortes lampejos escravagistas e estamentais, quando tinha que caminhar um passo à frente, optou pelo pretérito por ser conhecido, sustentando aquela observação do literato russo Fiódor Dostoievski, segundo a qual, “o homem social é incapaz de tolerar a própria liberdade, estando disposto a trocá-la pelo líder que lhe garanta pão e segurança”. Neste sentido, diante da possibilidade de se construir uma ponte para um futuro que é incerto, o brasileiro escolheu ficar com o conhecido, ou seja, com aquele que se comportava como seus antepassados messiânicos e sebastianistas quando vocifera isso e aquilo apelando para o emocional dos brasileiros, em detrimento da razão. Esta última requer de todos, planejamento para se chegar a algum ponto. Por exemplo, quando se pretende empreender uma viagem, ela não é feita de chofre, pois exige toda uma questão de logística, incluindo passagens, hospedagem. Enfim, entre a racionalidade e a vingança por terem visto os desejos desfeitos, boa parte do brasileiro optou pelo ressentimento por não se ter alcançado o tão sonhado adjetivo de ser isso e aquilo que ilustra a eterna pergunta socrática. Se analisarmos com um pouco mais de objetividade, saberemos quem são essas pessoas e quais categoriais sociais pertencem. Para ativá-los bastou acessar tudo o que armazenavam em termos de pensamento e aí houve a reação travestida de um conservadorismo lustrado com um velho fantasma: o comunismo que, até onde eu sei, nunca foi colocado em prática em ponto nenhum da Terra. No que diz respeito às identidades, lógico que tudo está fragmentado e o processo é irreversível e aqueles que não querem ver o amanhã, participando da construção do vir a ser de uma sociedade livre e democrática, se apegam ao passado, reagindo quando são questionados pelas identidades que surgem nesse momento significativo da sociedade global. Neste ponto, creio que o filósofo norueguês Sören Kierkegaard tinha razão quando afirmava que o homem tem medo de ter medo e esse processo faz com que a pessoa retroceda diante do inexistente, tendo pela frente um mundo a ser edificando por novos comportamentos. Sendo assim, acredito no que disse Machado de Assis, por intermédio de um de seus oblíquos narradores, através do conto Teoria do medalhão, que devemos mudar os hábitos antes de alterarmos as leis. Entre um amanhã incerto e um ontem sustando pelo hábito, o brasileiro optou pelo último e o que estamos assistindo em diversas áreas da vida em sociedade, inclusive o ataque sistemático à ciência orquestrado por mentalidades medievais, é uma consequência disso.

 

Como vem observando a tragédia da Covid, facilitadas pelas tendências fascistas dos últimos anos?

 

Se observamos com a devida acuidade, a tragédia provocada pelo Covid-19 é de certa forma algo que vinha se avizinhando no front da humanidade. Foram registradas diversas epidemias localizadas nos mais diversos cantos do mundo e ainda assim a humanidade não observava ou se recusava a ver que aquilo poderia se tornar global. O que mais se falou desde o início do ano passado, foi que era preciso cuidar da economia, mas pouco se falou sobre a preservação da vida e as medidas necessárias para se evitar o caos que se apresentou logo depois, quando adotadas se mostraram tardias e uma corrida em busca da vacina se estabeleceu e, junto a ela, severas críticas ao universo da ciência, conforme vinha se perpetrando no Brasil até o final de 2019. Uma gestão que, quiçá, as desigualdades sociais existentes, pensava apenas na eleição do próximo ano e neste sentido precisava continuar em cima do palanque, se apressou em fazer uso politiqueiro dos problemas que assolavam o Brasil por conta do Covid-19. Penso que ficar aqui reproduzido o que foi amplamente divulgado pela mídia social seria a mesma coisa que chover no molhado, pois todos sabem que a maioria das mais de 600 mil mortes por conta da pandemia aqui em nosso país poderia ter sido evitada, caso não houvesse o descaso das autoridades constituídas por meio dos processos democráticos e eleitorais, mas estamos prestes a sair dessa espécie de “chuva negra” com muitas marcas indeléveis, e o povo precisa de fato observar que o poder não é de quem ocupa cargos eletivos, mas sim do eleitorado que deve escolher seus candidatos com base na razão e não em apelos emocionais, ressentimentos e ódios que nos reportam ao tempo da Inquisição medievalista. É preciso levar em conta que a pandemia afetou a todos, indistintamente e por uma opção governamental, principalmente daqueles que assumiram o poder federal em janeiro de 2019, conforme amplamente divulgado pelas mídias globais. 

 

É possível ainda ter esperança no homem, no brasileiro e no Brasil?

 

Sim! Sou otimista e um tanto quanto utópico, contudo, com os pés firmes no chão, levando em conta o que disse certa vez o pensador russo Mikhail Bakunin. Segundo ele, “o homem que fala em revolução, mas não faz de sua vida um ato revolucionário, tem na boca um cadáver”. Portanto, se eu não acreditar que a humanidade, que no presente, se encontra à beira dum colapso, mas que não significa o seu fim, creio que se perde o sentido de se estar aqui, inclusive te concedendo está entrevista. Se eu não achar que meus textos possam, de alguma forma, em algum momento na vida daquele que por ventura vir a lê-los ter algum significado, não tem porquê escrevê-los. Lógico que tenho claro, conforme disse o semiólogo italiano Umberto Eco, que todo enredo é de certa forma “uma máquina preguiçosa que não pode dizer tudo, esperando que o leitor faça a sua parte a partir de suas experiências”, preenchendo as lacunas que o escritor deixa em suas enunciações. Cabe aqui uma referência ao cientista social Nelson Saldanha que no texto “O escritor e o livro” nos diz que “a referência ao escritor é sempre uma referência aos escritores: o escritor, no singular, é uma abstração, um ‘tipo ideal’, obtido com as notas e os traços que se encontram nos escritores – tal como ocorre quando falamos no político, no artista ou no empresário. Há um mundo de implicações e de ideias, de dentro do qual temos de tirar algumas coisas mais viáveis e mais coerentes para dizer”. Desta forma, a escrita, bem como a leitura que abrem portas que sem essa ação não seriam descerradas, como dizia Proust num texto breve dedicado à leitura, devem externar essa esperança que eu tenho no futuro da espécie humana. Sendo assim, creio que o que está em crise é um modelo de vida social construído depois da Segunda Guerra Mundial que se esgotou ao ser globalizada, incluindo aí as mais diversas formas de transformações provocadas pelo universo tecnológico. Pensando nessas mudanças, principalmente no campo da ação, visando o âmbito da afetividade.

 

Quais os projetos atuais e os para o fim desse doloroso túnel em que nos encontramos?

 

São vários em diversas frentes. Lembro-me de uma conversa com meu filho logo no começo dessa pandemia. Segundo ele, se não sairmos melhores desse processo todo, ela não terá servido de nada. Sendo assim, durante esses mais de dezoito meses em que a vida caminhou lentamente para alguns setores, enquanto outros se tornou mais dinâmico, eu revisei algumas coisas que pretendo colocar em prática, bem como finalizei outras que estavam em fragmentos e outras partes em caráter embrionário. Objetivo publicar em livro algumas de minhas crônicas e contos que estão postadas em meu site. Escrevo diariamente sobre tudo, sobretudo sobre a vida que tínhamos e a que almejamos ter. Tenho trabalhado uns contos e também um romance que pretendo publicar em 2022. Fora do campo literário, estou desenvolvendo uma pesquisa objetivando entender o que tem de velho e o que é novo nesse neopopulismo alicerçado numa espécie de coronelismo que ganha corpo com o advento das redes sociais e o mundo virtual. Já escrevi algumas coisas sobre isso, mas há um ano que venho pesquisando com mais acuidade a temática, até mesmo para entender que país é esse em que, mesmo tendo um passado ditatorial, consegue fincar bandeiras por intermédio de um governante que namora firmemente com a autocracia. Compreender como a cidadania, quiçá os direitos que são garantidos por lei, não conseguiu ainda deixar a esfera delegativa da democracia, chegando ao universo da participação efetiva na vida política brasileira.

 


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