As imagens de sua poesia se detém, frequentemente, nas
figuras de diferentes animais, sempre construindo intrincada indagação sobre
seus existires e sobre os nossos, por conseguinte. Diferentes autores da literatura
se utilizaram de animais como personagens para metaforizar a existência humana.
Como se percebe essa temática em sua obra?
RS: Meu contato com animais remonta à infância.
Quando era menino, vivi numa casa que tinha dois grandes quintais. Num deles
criávamos galinhas e um porco, mas havia canteiros de hortaliças que favoreciam
o aparecimento de pulgões, joaninhas, lagartas, besouros e outros bichos. Até
as minhocas nos interessavam. Uma das nossas diversões era capturar joaninhas,
por exemplo, que em geral têm cores variadas ou manchas em seu dorso, e
examinávamos suas larvas. Capturar caramujos e promover corridas de lagartas
eram brincadeiras comuns. Dávamos nomes às galinhas, observando o seu
comportamento, e acompanhávamos o crescimento delas no terreiro, bem como o
surgimento das ninhadas. No entanto, os primeiros poemas que escrevi tomando os
bichos como temática surgiram só no final da década de 1990. Num belo dia,
escrevi alguns versos em que tentava captar, por assim dizer, a identidade
de alguns animais, aquilo que os distingue dos outros em meio à imensa
variedade da fauna, entendendo que cada animal é o que é do modo como é porque
tem características muito próprias. Mas confesso também que minha intenção,
quando me lancei a essa aventura de escrever sobre os bichos, foi tomá-los como
metáforas de nossa condição: cada indivíduo aparece no mundo, de fato, como um
ser único, nascido por acaso num canto do cosmo, para viver num pequeno planeta
onde se nasce e se morre todos os dias. Tomar consciência disso nos aturde em
certos momentos da vida, mas nos insufla também um sentimento de
responsabilidade para com a existência e para com nós mesmos, tanto do ponto de
vista de nossa identidade pessoal, quanto do ponto de vista dessa oportunidade
única, a nós concedida pelo cosmo, de estarmos aqui a olhar para a natureza e a
contemplar os seus mistérios. Já o outro lado da questão, no que diz respeito a
esses poemas, é que, quando os escrevi, não tive intenção de publicá-los. Mais
tarde, em 2005, quando eu ainda trabalhava como professor na Universidade
Estadual do Paraná, tive a ideia de enfeixá-los numa plaqueta para
distribuí-los entre estudantes e professores durante uma semana de Letras. Como
não eram muitos, devo ter escrito mais dois ou três, para formar o conjunto do
que viria a ser, em seguida, a coletânea original do livro Bichos,
publicada naquele ano. Mas aí vieram mais ideias: apresentei a coletânea ao
escritor e artista plástico português Nicolau Saião, e ele se entusiasmou com o
livro. De pronto, começou a enviar ilustrações para a obra — uma para cada
animal —, muito expressivas, e imaginei pudessem formar, com os poemas, alguma
coisa maior ou mais consequente, para além do limite de uma simples plaqueta a
ser distribuída localmente em forma de apostila fotocopiada. Tomei então a
iniciativa de mandar imprimi-la e dar a público meu primeiro bestiário. As que
vieram em seguida ou mais tarde de certo modo remetem a esse empreendimento
inicial: Outros bichos, retomando o espírito original do livro mestre; Bichos
imaginários, dando à temática um tratamento surrealista; Fauna &
Cia., que lhes imprime um tratamento alegórico, de sentido político; e
talvez alguma outra que venha a surgir. Quanto à poesia satírica e humorística,
os bichos também estão lá, pois os dois primeiros livros dos Opinionautas —
que costumo chamar de epopeia bufo-satírica — são coprotagonizados por dois
cavalos falantes, e os quatro livros seguintes (dois ainda não publicados) têm
como uma de suas figuras centrais um animal em forma de grifo, chamado Eriq.
Mas aparecem também os sapos e os lêmures falantes, além de um centauro, que
eventualmente representa a fusão do homem com o animal. Assim, posso concluir
que a imagem do bicho deixou de ser acidental na minha criação e assumiu
proporções maiores, podendo ser que eu volte a ela no futuro ou que continue a
voltar.
A escolha das leituras de um poeta, geralmente,
indicam também a forma como lida com a própria escrita e com os temas que a
compõem. Suas pesquisas de Mestrado e Doutorado são, respectivamente, a
respeito de Manoel de Barros e João Cabral de Melo Neto. Que portas esses e
outros autores abrem em sua obra poética?
RS: É difícil, ou impossível, ler a obra de um grande
poeta sem receber e absorver algum tipo de influência. Meu primeiro contato com
a poesia de Manoel de Barros foi acidental: li sobre ele numa revista de
literatura no início dos anos 1990 e, sabendo de sua existência, comprei um de
seus livros numa livraria. Naquela época o poeta começava a ser descoberto
pelos meios literários, embora já tivesse uma longa trajetória de publicação,
iniciada ainda nos anos quarenta, tendo, portanto, na altura, já alcançado e
ultrapassado em muito a sua maturidade literária. Quando fiz o mestrado na PUC
de Minas Gerais, entre os anos de 1993 e 1995, escrevi um pequeno ensaio a
respeito de sua obra, para servir como trabalho de conclusão de uma disciplina.
Aí, na hora de fazer a dissertação, propus à professora a ideia de alongar o
estudo e transformá-lo numa pesquisa. Ela topou. Isso me levou a mergulhar
fundo na poesia do corumbaense, com consequências, suponho, para a minha
própria criação. Mas não sei dizer até que ponto recebi dele uma efetiva
influência e qual aspecto ela assumiu. Quanto a João Cabral de Melo Neto, eu o
estudei no doutorado. Tinha a intenção de aplicar à obra dele o mesmo método de
estudo que apliquei à de Manoel de Barros, porém acabei me detendo em questões
de crítica literária, cujo tratamento me pareceu mais urgente, a ser feito
antes de eu escrever sobre a poesia propriamente dita. No final, fiquei apenas
com a crítica, porque o estudo imaginado originalmente não aconteceu. Falei de
Cabral, depois, em um ou dois artigos acadêmicos publicados no correr dos anos,
mas perdi o interesse em fazer o estudo mais longo. Se Cabral me influencia?
Com certeza influencia, devo admitir; mas, do mesmo modo que Barros, não sei
até que ponto. Como eu disse, é difícil conviver com dois grandes escritores —
entre os quais, diga-se de passagem, descubro muitas afinidades —, esmiuçar as
suas obras e interrogá-las durante um certo período de tempo, sem sofrer algum
tipo de influxo. É importante considerar o elemento da aprendizagem que há em
tudo isso: aprendizagem de uma certa liberdade do pensar e do escrever poesia
que se adquire com Manoel de Barros, e a ideia do rigor no tratamento da forma
que João Cabral nos ensina. Tudo isso deve estar, acredito, amalgamado naquilo
que escrevo hoje em dia. E há que considerar o aprendizado com outros poetas:
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima,
Cecília Meireles, que sempre li com fervor. Atualmente, leio muito os
portugueses — Pessoa, Sá-Carneiro, José Régio — os admiro imensamente (para
dizer a verdade, li-os antes até de ter lido os brasileiros) e ando mergulhado
em seus escritos. A leitura de Régio, em particular, me estimulou a publicar um
livro de sonetos com o título de Quando me abriram portas. A leitura de
Pessoa e seus heterônimos me ensinou as possibilidades de manejo do verso livre
principalmente. E assim por diante. Com Antero de Quental se aprende a
disciplina e a contenção do soneto.
A riqueza cultural do Brasil é tão grande e tem nos
fornecido diferentes poéticas e olhares. Em sua caminhada profissional ou como
estudioso, que diferenças você observa entre as poéticas dos diferentes Estados
em que esteve, se é que há?
RS: Não sou muito atento a esse tipo de coisas. Mas
as regionalidades existem, por certo. Enquanto morei no Paraná, estive muito
ocupado com a elaboração da minha tese de doutorado e lia muita crítica, ao
mesmo tempo em que expandia meu conhecimento de poesia brasileira, lendo desde
os árcades até os simbolistas. Descobri, lá, por exemplo, a poesia de Helena
Kolody e de Foed Castro Chamma — grandes poetas que mereciam ter uma projeção
nacional maior do que aquela que têm atualmente. Não sou leitor fervoroso de
Leminski, mas reconheço a sua enorme influência sobre os poetas de hoje, que é
importante levar em conta. Dos poetas que viveram ou vivem fora do eixo Rio-São
Paulo ou do Sudeste em geral, ando muito ocupado com Francisco Carvalho, Nauro
Machado e Alberto da Cunha Melo, por exemplo, em minhas leituras atuais. A
descoberta da poesia de Carvalho me abriu portas importantes, do mesmo modo
como ocorreu com a descoberta de Manoel de Barros. Quando descobri Alberto da
Cunha Melo, fiquei perplexo em saber que aquele poeta existia e ainda estava em
atividade (morreu pouco depois), embora gozando de pouca notoriedade no cenário
nacional. Ignorar os mestres é uma lástima e um grande prejuízo para os
nacionais. Devíamos prestar mais atenção aos nossos grandes escritores, pois
não estão brotando todos os dias nos gramados. Felizmente — embora de um modo
às vezes confuso — também a internet tem aberto caminhos, permitindo um contato
mais instantâneo com a alta poesia, quando ainda é desconhecida, coisa que os
livros nem sempre favorecem, dada a sua pouca circulação e, no caso atual, o
fato de serem editados por editoras de pequeno porte e sem acesso às livrarias.
As mídias e a internet facilitaram ou dificultaram o
fazer poético?
RS: Como eu disse, a internet abre caminhos e
franqueia passagens, permitindo uma comunicação mais imediata com a criação
poética das diversas regiões. Assim, aproxima autores e leitores, de um modo que
antes não era possível sequer sonhar. Um dos benefícios (e não sei se
benefício) é que, de repente, não somente estamos a ler os autores, como também
podemos nos comunicar com eles por meio das redes sociais. Formamos grupos,
trocamos impressões, compartilhamos experiências. Entramos no WhatsApp,
e lá está a multidão do poetas numa tertúlia infinita. Já o lado negativo é que
isso favorece um sentimento de falsa proximidade e de intimidade, que nem
sempre é benéfico. Deixamos de tratar um poeta mais velho por “senhor” e
começamos a chamá-lo de “você”, como se fosse o nosso colega de bar. Os
sentimentos de admiração e reverência desfalecem, conforme o hábito dos tempos.
No entanto o distanciamento — a distância — é um pressuposto
da literatura, pois certas coisas são feitas ou existem para serem vistas de
longe, como as pinturas murais e as catedrais. Não me interessa, às vezes,
saber que um poeta está a trabalhar num livro e que tem realizado estas e
aquelas operações para chegar a este ou àquele resultado. Há pessoas publicando
seus esboços na internet, quase em tempo real — o que é no mínimo
uma temeridade. Temos uma grande curiosidade quanto a isso, mas devemos
nos perguntar se realmente queremos saber por onde passou a elaboração de um
poema admirado ou se, ao sabê-lo, obteremos algum tipo de vantagem. Em geral,
formamos apenas uma visão distorcida das coisas, algo viciada pelas ilusões da
proximidade. Particularmente, evito comentar sobre a elaboração de meus
próprios poemas ou livros nas redes sociais, embora aqui e ali publique
inéditos, que poderão passar por revisões e transformações no futuro. Acho que
publicar intimidades não interessa a ninguém, até porque —
vale pensar — um poema que levou anos a ser
gestado tem, no final, o mesmo valor que um poema que foi escrito em questão de
minutos, contanto que ambos tenham alguma coisa a dizer e sejam — como se dizia
antigamente — realmente inspirados ou capazes de suscitar uma emoção.
A arte sem mistério ou que não emociona se torna tediosa. Escarafunchar a
intimidade da escrita, falar de coisas como “processos criativos” é vício da
era presente, estimulado pela crítica acadêmica (leia-se: universitária), que o
incutiu nas pessoas — crítica muitas vezes formuladas por
pessoas que nunca escreveram um poema ou um conto. Na minha opinião, não
existe tal coisa como um “processo criativo”, como se o poeta se sentasse no
seu laboratório ou na sua oficina e começasse a experimentar para ver no que
vai dar. Existe, a meu ver, apenas a vida, a experiência, a luta cotidiana
com a palavra, que pode até redundar em poesia, mas nunca se sabe. Rilke dizia
que versos são experiências, opinião com a qual tendemos a concordar. Agora,
outra questão que eu gostaria de observar, quanto ao advento da internet e suas
repercussões no universo da literatura, é a seguinte: a impressão que tenho é
de que a instantaneidade da comunicação pela rede de computadores vem
propiciando o surgimento de um tipo novo de literatura, uma literatura escrita
para figurar na rede. Observe o tipo de poesia que alguns autores e críticos
publicam em suas redes sociais. Não é qualquer poesia que produzirá impacto no Facebook
ou no Instagram, assim como não é qualquer tipo de análise crítica ou
consideração teórica de caráter percuciente que merecerá os views e os likes.
Um bom texto de crítica, por melhor que seja, costuma produzir impacto
infinitamente menor que um comentário breve publicado no blogue de um colunista
famoso. Então, podemos observar o surgimento de uma poesia, de uma forma
destinada às redes sociais e específica para elas. Há, inclusive, um soneto,
uma quadra, um haicai que se escreve hoje não para ser lido no papel, mas para
ser apreciado na tela do celular ou do computador. Essas experiências costumam
ser breves e de caráter muito fugidio, tal como beber um refrigerante. Isso é
uma mudança, não sei se boa ou se ruim — estou apenas constatando —, mas uma
mudança, e vejo-a como a indigitação de um caminho para começar a responder à
sua pergunta.
Diversos autores precisam custear suas publicações e
não tem acesso a um público maior, o que jamais vi como demérito ou
desqualificação. Em um tempo de likes e visualizações em que editoras se focam,
muitas vezes, não na qualidade literária, mas na quantidade de seguidores que
poderão se tornar consumidores ou propagadores de uma falsa qualidade, como vê
essa relação entre mercado, escrita e publicações?
RS: Esta é uma pergunta interessante. Quando fiz meu
mestrado, tomei o ônibus em Belo Horizonte e fui parar em Campo Grande, no Mato
Grosso do Sul, para conversar com Manoel de Barros. Bati à porta de sua casa, e
ele me atendeu. Minha intenção era entrevistá-lo, fazer perguntas sobre
questões que poderiam figurar na minha dissertação. Ele não quis dar
entrevista, preferiu apenas falar. Então, num determinado momento, sentado no
sofá de sua sala, na altura de seus quase 80 anos, me assegurou de nunca ter
pago pela impressão de um livro. Nunca esqueci o que ele disse naquela noite,
mas ao longo da vida tomei uma decisão de sentido contrário: eu não me
importaria e até faria questão de pagar pela publicação de meus livros, de
preferência todos eles. Não era uma atitude de rebeldia gratuita. Tratou-se de
uma escolha pessoal, que foi se consolidando ao longo dos anos, à medida que
tomei consciência das dificuldades efetivas, para os poetas, de publicarem seus
livros em editoras comerciais. Na época da conversa com Manoel de Barros, eu
não tinha essa consciência. De certo modo, ainda não havia formulado em minha
mente um projeto claro de publicação de livros, fosse de poesia ou de prosa,
porque isso para mim quase não existia. Depois, mesmo mudando eventualmente de
opinião, fui descobrindo as reais dificuldades, as quais, por assim dizer, me
empurraram ainda mais para dentro da minha decisão. Assim, para resumir, ela
praticamente se confirmou em todos os sentidos, pois até hoje tive apenas um
livro de poesias publicado por iniciativa de editora, que é o Altiplano,
dado a público por iniciativa do Camilo Prado, editor da Nephelibata — em
tiragem muito pequena, que provavelmente não chegou a 20 exemplares. Do mesmo
modo, uma edição bem simpática dos Bichos foi produzida em Moçambique,
no âmbito de um projeto de produção de livros para serem distribuídos em
escolas, por iniciativa de algumas pessoas e sem intenção de lucro. Demorei
anos para ver a cara desses livrinhos, que um dia me foram enviados por uma
funcionária da educação moçambicana. Voltando, pois, à pergunta, posso dizer
que ela se conecta ao que eu disse acima sobre o impacto da internet na
produção literária de hoje: a busca de likes e visualizações tende a
distorcer e a falsificar o significado profundo da experiência literária,
entendida esta como evento que modifica o curso das nossas vidas e, no dizer de
Maurice Blanchot, nos conduz ao deserto. Não o deserto das ideias ou das
expectativas, mas o deserto da solidão que acomete todo aquele que se aventura
no campo da criação artística. No âmbito da publicidade, a poesia deixa de ser
profecia, deixa de ser compromisso com a linguagem, convertendo-se em consolo
para o ego: escrevo para me “sentir” existindo, como se diz, ou como um
paliativo para as minhas dores de cotovelo. (Recentemente vi no Facebook a
propaganda de um curso de cura pela escrita promovido por um escritor famoso do
Brasil.) Mas a prova da poesia que realmente importa é a sua capacidade de
profetizar, num sentido que se aproxima do religioso, mas sem dever nada a ele.
Quando Ferreira Gullar diz que o preço do feijão não cabe num poema e que a
poesia “não fede nem cheira”, ele está a pronunciar algo muito importante para
a nossa época, com repercussões nos dias atuais. Igualmente, quando João Cabral
escreve Morte e vida severina, ele põe em questão um modo de vida
em sociedade e uma situação de exclusão e produção de miséria tornados cada vez
mais agudos nos dias correntes. O poema “Tabacaria” de Fernando Pessoa é pura
atualidade, sendo, portanto, pura profecia, pois fala de um modo de vida que se
tornou o nosso e o de bilhões de pessoas pelo mundo afora. Ele dá expressão e
forma ao nosso ser. Com certeza, quando Pessoa o escreveu, ele não tinha essa
intenção ou essa pretensão de se tornar tão representativo. Ele apenas se
sentou lá e escreveu sobre aquilo que sentia e via à sua volta. Se escrevesse
pensando em likes e visualizações, provavelmente teria se frustrado. Mas
é difícil dizer isso aos poetas jovens, porque a ideia do anonimato está em
pleno conflito com a da importância e da profundidade da profecia, as quais,
por sua vez, impõem o reconhecimento de uma universalidade. No fundo, todo
poeta quer ser lido e reconhecido, quer que os seus livros cheguem ao maior
número possível de pessoas; porém, como distinguir notoriedade de
universalidade, fama de relevância, que tão facilmente se confundem frente ao
olhar distraído? Uma das ideias mais inadequadas do nosso tempo — a de que
aquilo que é apreciado e “curtido” por muitas pessoas deve ser necessariamente
relevante ou fundamental para elas — advém dessa confusão. E a confusão advém,
por sua vez, da ansiedade e da pressa em encurtar caminhos, de supor que uma
coisa pode acontecer antes do seu tempo devido, como se a planta pudesse
crescer antes de a semente ter germinado.
O saudoso Nonato Gurgel me perguntou certa vez para que
servia a poesia e minha resposta passa, claramente, pela falta de serventia
prática como objeto no mundo das coisificações, mas que sem ela, nossas
existências e realidade seriam opacas de beleza e sentido. Afinal, a seu ver,
para que serve a poesia?
RS: Essa é uma das questões sobre as quais reflito
cotidianamente. Às vezes, sou tomado de desânimo, não passando um dia sem que
eu tome a decisão de parar de escrever poesia e me dedicar a outros
assuntos, quem sabe à fabricação de brinquedos artesanais para distrair as
crianças. Mas aí a poesia retorna. Quando menos espero, surge um verso em minha
cabeça, logo em seguida acontece uma estrofe. Avulta, depois, a curiosidade de
ver como ficaria aquilo, caso se convertesse em poema. E assim, dia após dia, a
obra vai crescendo, tomando proporções, ficando grande demais para qualquer
possibilidade de publicação. Por outro lado, se o que eu disse acima acerca da
profecia tiver algum sentido, então a resposta pode estar nisto: escrevemos
porque existe escrever, porque é possível, e não porque é
necessário. (Na arte, muitas vezes, a necessidade vem depois da possibilidade.)
De repente, essa ideia de que todos os livros já foram escritos revela o seu
aspecto de impropriedade, representando, além disso, uma desonra para a poesia.
Há uma poesia do passado — a ser lida e venerada —, mas existe conforto em
pensar que alguns indivíduos vivos ainda são capazes de escrever poesia também, e que, tal como há uma poesia
do passado, há uma poesia do presente, aquela de quem vive um experiência
semelhante à nossa e que não é a mesma dos nossos ancestrais. Os religiosos —
que costumam ser mais espertos que os críticos literários — sabem disso muito
bem. A graça divina não está restrita ao passado, não é um evento que ocorreu
uma vez e não ocorrerá mais, mas continua atuando no mundo, inspirando e
convocando pessoas para algum tipo de missão. Trata-se, pois, de uma sabedoria
útil, que deveria inspirar os poetas. Eu, que não sou religioso, presto atenção
a essas coisas, pois sei que há nelas uma verdade profunda. A poesia não
precisa ter uma utilidade, não é uma mercadoria (embora possa ser divulgada e
distribuída mediante recurso a certos objetos — chamados livros — que são
vendidos no mercado e estimulam a circulação do dinheiro). Mas é fundamental,
por assim dizer, e essencial, porque surge de uma experiência fundante da
linguagem, de caráter ancestral — configurada na forma de uma luta dos seres
humanos para dar nomes às coisas e dar palavras à vida, entendendo-se a
linguagem como um elemento básico do ser em sociedade e do ser consigo mesmo.
Isso não é pouca coisa, como se vê, e dá uma ideia clara da dimensão e da
importância de tal experiência, bem como das responsabilidades e dos
compromissos que recaem sobre aqueles que a ela se entregam.
Uma avalanche caiu sobre nós nesses biênio 20-21. De
que forma tem sido viver tudo isso e qual a lição poderemos tirar de tudo isso,
se é que é possível alguma lição que não a tristeza e o desemparo por tantas
perdas?
RS: Há muitos aspectos a serem observados quanto a
essa pergunta, mas dois me parecem centrais: o político e o sanitário. No plano
político, é o que estamos vendo aí, com as elites econômicas, políticas e
jurídicas brasileiras se desnudando em praça pública e deixando patente, para
todos verem, o seu lado mais cruel e predatório. Vide, para se ter uma ideia,
as tais “reformas” que vieram na esteira do golpe de estado de 2016 —
protagonizado, ai de nós!, por um indivíduo que, inclusive,
teve a iniciativa de publicar um livro de poesia (provando assim que a poesia,
tratada sem seriedade ou compromisso, costuma não ter nenhuma repercussão para
a consciência moral dos indivíduos). Falo das reformas trabalhista,
previdenciária e de quantas outras surgiram e ainda surgirão no contexto dessa
loucura que acometeu a elite política da Nação nos últimos anos, chegando ao
limiar da perversão. (Para se ter uma ideia, recentemente estive a conversar
com um amigo meu, que se declarou decepcionado ao descobrir, em véspera de
solicitar sua aposentadoria, que ainda terá de trabalhar por mais 7 ou 8 anos,
para cumprir as regras impostas — e cruelmente inscritas no texto
constitucional — pela nova legislação.) Temos uma política pervertida, por
assim dizer, conduzida por indivíduos toscos e desprezadores da legalidade,
preocupados mais com os seus ganhos imediatos, como se isso pudesse garantir
algum futuro ao país, do que com esse futuro propriamente dito. Já no plano
sanitário, vivenciamos essa catástrofe enorme, quase impensável e indizível, de
estarmos nos aproximando, neste momento, do número trágico de 600 mil vidas
ceifadas pela pandemia — coisa que deveria nos lançar a todos no luto, mas que
muitas pessoas vêm tratando com naturalidade e até indiferença, como se isso
lhes dissesse respeito. É duro, portanto, e horrível pensar que as autoridades
nacionais permitiram, com pouquíssimo esforço em contrário, que 600 mil
concidadãos perecessem vítimas do vírus; mas é igualmente medonho observar que
isso não cause nas pessoas um impacto mais grave, que elas não saiam às ruas e
rasguem suas roupas em lamento, como se fazia antigamente. E mais: enquanto os
brasileiros morriam, o que fazia o Congresso Nacional? Concentrava-se em votar
privatizações de empresas, em discutir questões de imposto de renda e outras
ninharias, cuidando de arranjos partidários, verbas de campanha, com muitos
parlamentares vendo na mortandade uma “janela de oportunidade” para a
consecução de objetivos mesquinhos. E todo esse desastre vem ainda acompanhado
pelo aumento do índice de desemprego — que atinge proporções inéditas na
história recente do Brasil —, pela piora abissal nos indicadores sociais, pelo
alastramento da fome e da miséria em níveis aterradores no território nacional.
Os poetas, os escritores em geral, terão de lidar com isso no futuro, quer
queiram ou não, ou serão ultrapassados pela história. Neste momento talvez
estejamos atordoados, é o que sei. Porém a necessidade de olhar de frente para
o desastre se impõe, porquanto há uma novidade no fato de que esta pandemia — e
a tragédia que ela causou — não é vivida às ocultas, sem publicidade, com
notícias publicadas em rodapés de jornais. Pelo contrário: acompanhamos o
noticiário diariamente, lemos as estatísticas, informamo-nos sobre os
escândalos (que, além do costumeiro, no que diz respeito a esses eventos,
ganharam agora uma pitada a mais de crueldade, com um aspecto particularmente
escabroso que faltava aos escândalos políticos e financeiros usuais, geralmente
restritos ao conceito de apropriação sorrateira do dinheiro público). Minha
opinião é, portanto, que não cabe aos poetas ignorar tal realidade, continuando
a viver como se não fosse com eles, como se nada estivesse acontecendo. Se há
uma lição a tirar, é a lição do comprometimento, do envolvimento com o humano e
com a vida em todos os seus aspectos, do qual não há como fugir sem uma grande
defasagem em nosso arcabouço ético e moral e em nossa condição de indivíduos
participantes de uma sociedade. O conforto e o sentimento de superação das
perdas virão certamente, mas acredito que só depois de um longo processo de
tomada de consciência e de purga, do qual alguns já se compenetraram, mas que
para muitos está apenas começando. Que a poesia não se omita — é o meu desejo
—, sob pena de perder a sua autoridade profética ou de se converter numa mera
tagarelice sobre questões que, afinal, só interessam a seus autores ou às
confrarias a que eles pertencem.
Fale-nos um pouco sobre sua Poesia política:
RS: Sobre minha poesia política e socialmente empenhada, sim, também
surgiu de maneira fortuita, fora de um projeto consciente, com objetivos
duradouros. Mas acontece que nos últimos anos escrevi tantos poemas
de ressonância crítica e política, muitas vezes raivosos, geralmente de
circunstância, frequentemente humorísticos, com aspecto de crônica de costumes,
que não posso ignorar tal faceta — cada vez mais impositiva — da minha criação.
Ela se impôs por si mesma, impulsionada pelo arrasto das circunstâncias e pela
fatalidade da história. E adquiriu tal dimensão, no contexto da criação de uma
obra, que já não sei dizer mais quantos poemas — sonetos, epigramas, etc. —
escrevi para abordar questões de política. Se você olhar bem, perceberá que
eles compõem um painel, na forma de um longo comentário, sobre o cotidiano do
Brasil dos últimos anos, talvez da última década. Por isso, sempre que publico
alguma dessas criações, faço questão de estampar, junto com o texto, a data em
que foi escrito, bem como geralmente apenso a cada uma delas uma epígrafe
retirada de alguma notícia ou artigo de opinião divulgados na imprensa e nos
blogues. A intenção é datá-los, para lhes dar um aspecto de epitáfio, e então
você perceberá que essa é uma de suas feições mais salientes. Veja, por
exemplo, a coletânea Indigestos e purgativos, surgida inicialmente como
um comentário satírico aos eventos envolvendo o golpe de estado de 2016 e suas
consequências e expandida depois para abrigar o comentário de eventos
correlatos, que vieram em seguida, até a eleição de Jair Bolsonaro — coroamento
exemplar de todo o processo. É no que deu, parecem nos dizer essas criações.
Mas há também os Opinionautas — livro difícil sob muitos aspectos, tanto
do ponto de vista de sua interpretação, quanto de sua criação (afinal é escrito
em oitava rima), mas principalmente de sua publicação, pois a obra conta,
atualmente, com seis livros de aproximadamente 250 páginas cada um, tendo
levado mais de 10 anos para ser escrita. É muito, mas não o suficiente, porque
a aventura humana pelos desertos da opinião e do equívoco me parece infinita, e
assim não há poesia que dê conta de dizer tudo. Mas há também as coletâneas
breves, como Lição de economia, Ponte para o futuro e, mais
recentemente, Na glote, que abordam os aspectos da vida nacional e, de
certo modo, tentam mapear aquilo que eu disse acima sobre a crueldade, a
indiferença e o verdadeiro sadismo das elites políticas e econômicas deste
país, no que diz respeito à sua atitude diante dos pobres e dos desvalidos. Perverter
a política para que, em vez de ser um instrumento de emancipação humana, se
torne arma para a espoliação dos mais fracos, como se tem feito nos últimos
anos, inscrevendo na Constituição humanista de 1988 artigos que subvertem
inteiramente o seu espírito, como a espúria lei do teto de gastos? Se você ler
com atenção os 268 sonetos de Indigestos e purgativos, sairá da leitura
com uma impressão melancólica, de verdadeira tristeza frente a essa crônica
versificada da vida nacional, mesmo escrita em tonalidade humorística. No
entanto, creio que isso favorece a experiência da purgação, pois instrui a
nossa inteligência e a nossa consciência quanto ao que fazemos ou deixamos de
fazer e quanto ao que devemos empreender no futuro. É uma constatação, acredito,
mas também uma contribuição, muito modesta, porque toda poesia deve ser escrita
sob uma perspectiva de comedimento e humildade, muito embora se possa, sempre,
tirar dela uma lição. Isso inspirará em nós e nos outros o desejo de que
um dia essas coisas sejam apenas memórias infelizes de um passado remoto, como
tem inspirado no seu autor. Cumpre caminhar para um futuro de relações mais
humanas e solidárias entre as pessoas, um futuro no qual os cidadãos não sejam
só espectadores da vida. Assim, se alguma contribuição puder ser dada nesse
sentido, o empreendimento já terá valido a pena, mesmo com todas as suas
limitações.
Renato
Suttana
Dourados,
setembro de 2021.
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