Entrevista de Paulo Martins

 



Paulo Martins é jornalista, escritor dos mais variados gêneros literários e reside em Lisboa.


Glória partida ao meio (7 Letras, 2009),  Adeus, Fernando Pessoa (7 Letras, 2014) e As diabruras de Orfeu (Ed. Lacre, 2020) formam trilogia temática sobre os anos de chumbo do Brasil entre 1964 e 1985. Gostaria que falasse um pouco sobre os livros e sobre a sua dolorosa experiência com aquele terrível momento histórico.


Realmente a minha ideia original foi escrever uma trilogia -- três romances mais ou menos sequenciais -- que abarcasse todo o período da ditadura militar. Mas, na verdade, não escrevi ainda o terceiro volume, sequer o comecei. O livro As Diabruras de Orfeu não foi escrito com a intenção de preencher esta lacuna. Eu já tinha muitas anotações dele desde o período em que tudo começou. E resultou que, pelas suas características, não saiu um romance, mas um livro diferente (eu o chamo de Sinfonia em Cinco Movimentos), de difícil classificação, mais próximo do ensaio, enxertado de relatos memorialísticos. Mas como a maioria desses relatos são de ordem política, às vezes fica parecendo que a intenção tenha sido a de concluir o projeto inicial, raciocínio não de todo inválido.

Observe-se, por outro lado, que o romance Adeus, Fernando Pessoa contém dois livros, relativos a dois períodos diferentes: o primeiro abrange o período da adolescência do personagem, sua descoberta da poesia e seus primeiros anos de vivências literárias no interior da Bahia; o segundo abrange o começo da maturidade, o encontro com a política e o sofrimento das contradições entre a vida literária e a vida política, que segue caminhando para a radicalização imposta pela época Jango. As duas histórias estão intercaladas e formam um contraponto, do começo ao fim. É minha ideia republicá-las separadamente e assim já teríamos uma trilogia, embora o primeiro volume ainda não sofra a contingência dos anos de chumbo.

Como Glória Partida ao Meio é focado no período de 1969/1970, auge da guerrilha urbana, ficaria de fora o período posterior, que envolve os anos da eclosão da guerrilha do Araguaia, as lutas democráticas pela eleição direta, a luta pela anistia etc. É sobre este período que ainda preciso escrever.

Mas é bom esclarecer que não tenho intenção de fazer mais um depoimento pessoal sobre a luta contra a ditadura militar. Já existe uma fartura de depoimentos a respeito. Além disso, minha experiência pessoal com a atividade revolucionária no Brasil, a vida clandestina, as prisões políticas, a tortura etc, é limitada. Assisti a muita coisa de longe. Creio até que minha experiência pessoal é pouco significativa se comparada à de numerosas histórias já públicas, de militâncias marcadas pela bravura, sacrifício, atos de heroísmo e tragédias humanas e pessoais que caracterizaram esse tempo. Meu depoimento não acrescentaria nada de novo, apesar de minhas seis prisões, do atroz sofrimento da clandestinidade, das fugas permanentes, do suicídio forçado de inúmeros projetos pessoais, inclusive os estudos superiores. Mas a criação literária, a invenção ficcional baseada numa extensa e assombrosa realidade que foram os anos de chumbo, esta sim, pode ter provavelmente um papel muito mais destacado do que as histórias factuais narradas ao pé da letra. E é isso que me proponho focar em meus escritos, dentro dos meus limites.

Em 2010, escrevi um pequeno ensaio para a revista peruana Cultura Sûr, intitulado Desventuras da Literatura Brasileira Contemporânea, no qual critico a postura da maioria dos autores brasileiros que pouco se sensibilizam com a experiência dos anos sinistros da ditadura, ao contrário do próprio Peru, do Chile, da Argentina e de outros países latino-americanos, cuja produção literária está carregada da ambientação política típica de suas tragédias políticas nacionais. Nossa literatura é a mais pobre no que tange ao resgate dos fatos históricos extraordinários de nosso tempo. O mexicano Carlos Fuentes, desde sua obra Geografia do Romance, já chamava a atenção de que, por mais que queiramos, jamais iremos encontrar personagens ficcionais à altura dos personagens reais que as ditaduras militares latino-americanas nos legaram: nossos tiranos são inigualáveis, verdadeiras caricaturas do horror, espécimes que a nossa ficção jamais deveria deixar escapar. Como denunciam, por exemplo, obras extraordinárias como A Festa do Bode (Vargas Llosa), Eu, o Supremo (Roa Bastos), O Outono do Patriarca (Garcia Márquez) e O Recurso do Método (Alejo Carpentier), O Senhor Presidente (M. A. Astúrias) e várias outras.





Que considerações traçaria entre aquele tempo ditatorial, narrado em seus romances, e o atual momento brasileiro?


Existem diversas diferenças entre aquele tempo e hoje. Mas vou me ater a três delas, que eu considero as mais importantes. A primeira é o nível de repressão. Antes vivíamos numa ditadura militar, onde o poder fazia o que queria e imperava o terrorismo de Estado. Hoje, embora vivamos num arremedo de democracia, o poder é limitado; o governo não pode fazer o que quer, já que as instituições democráticas estão em funcionamento e impõem limites. Mas Bolsonaro gostaria muito de voltar atrás, e sequer temos certeza de que ele não vá tentar isso a qualquer momento e de que venha a conseguir.

De modo que as diferenças nos níveis de repressão embutem uma contradição explosiva: Bolsonaro é um personagem bastante diferente dos ditadores do pós-64, mas que sonha fazer pior do que eles. É um líder carismático e ideológico por excelência, que age através de preceitos ideológicos inspirados no nazi-fascismo, em particular a glorificação da violência. Portanto, é um homem perigosíssimo, que, se encontrar uma brecha, vai virar o país de ponta cabeça. Sua permanência precisa ser interrompida a qualquer custo, dado o perigo que representa. Não à-toa, foi o primeiro representante da extrema-direita que conseguiu unificar e mobilizar no Brasil aquilo que Hanna Arendt identificou como base social do totalitarismo, que é a ralé. Bolsonaro é o líder da ralé. E, como sempre acontece, a ralé tende a se aliar com o grande capital financeiro nos projetos totalitários. Enfim, a grande contradição dentro do espectro repressivo é que, embora vivamos em certa legalidade, também caminhamos num campo minado.

A segunda diferença está na questão política/administrativa. A ditadura militar foi gerida por uma equipe muito mais bem preparada que a atual, e que sabia o que queria. A atual equipe representa o caos e a destruição do país, nem sequer pode ser confundida com o neoliberalismo clássico dos governos que antecederam o PT. É um desastre total, e por isso perdeu de cara a condição de sustentar-se no poder, desde que se atenha às regras democráticas.

A terceira diferença reside no tratamento dado à cultura. A ditadura militar combatia a cultura principalmente através da censura. Era mais cômodo. O governo atual o faz através do desmonte das instituições culturais e de seus instrumentos geradores de cultura. Portanto, é muito pior, uma vez que a censura podia ser driblada de diversas formas e não impedia a produção cultural, mesmo que não fosse devidamente divulgada. A política cultural atual corresponde perfeitamente àquela frase atribuída a Goebbels: “Quando ouço falar de cultura, puxo logo a pistola”.

Portanto, o que se coloca para o escritor nos dias de hoje é a tarefa de contribuir, com a arma da palavra e da arte, na construção de uma nova e grande frente antifascista, pois o fascismo é o perigo número um de nosso tempo. Eu diria que o fascismo, além de ser o principal inimigo da cultura, é, em consequência, o principal inimigo do escritor.




Muitos brasileiros, como você, decidiram estabelecer residência em outros países. Como tem sido a experiência de morar na Europa?


Eu diria que muito boas. Meus planos de vir morar na Europa começaram em 2017. Senti perfeitamente que o processo de fascistização do país era iminente. As promessas de Bolsonaro eram tão radicais, que pensei em algo bem pior do que realmente aconteceu. No Rio de Janeiro, um desconhecido candidato a governador prometia contratar snipers para matar “bandidos” de helicóptero. Bolsonaro elogiava a tortura, falava em matar Fernando Henrique e mais 30 mil, além de mandar toda a oposição para o exílio. Era um horror. Que fazer no Brasil num clima desse?

Em 2018 já tinha tudo preparado e me mudei, aproveitando a chance dada pelo governo português aos aposentados brasileiros para se estabelecerem aqui. Vi logo que eu tinha todo um campo aberto para produzir e criar em Portugal. Desde que estou em Lisboa já escrevi 4 livros e desenvolvo atualmente vários outros projetos. Lamentavelmente, aconteceu esta maldita pandemia, que cerceou nossa liberdade e limitou o terreno para o entrosamento com o mundo literário português e africano de língua portuguesa, que tinha começado tão bem. Mas logo vamos recuperar o terreno.

Além das vantagens meramente literárias, morar em Lisboa abria também uma enorme perspectiva de expandir meu conhecimento do mundo, através de um plano de viagens culturais, que logo implementei. E novamente a pandemia também interrompeu este plano, que estava em pleno desenvolvimento, com uma série de incursões por países da Europa e da África. Pretendo retomá-lo assim que puder.





Seus textos mesclam domínio da linguagem, vivências, temas profundamente humanos e vasta cultura: características da grande escrita, creio eu. O que mais lhe chama a atenção na leitura de um livro? Como vê a literatura produzida no Brasil e Europa atualmente? 


Está ficando cada vez mais difícil responder a este tipo de pergunta. A começar pela vastidão da produção literária no mundo e de sua complexa realidade. Ninguém pode dizer que a conhece a contento. Nem mesmo a do Brasil. Mas não há dúvida de que, em relação a um passado recente, estamos muito aquém em termos de qualidade e bem além em termos de quantidade. O mesmo talvez aconteça no resto do mundo.

Não é que a literatura esteja se esgotando, cedendo lugar a outras linguagens, ao contrário. Mas é inegável que o advento da internet está exercendo influências múltiplas, que ainda não somos capazes de prever as consequências. Algumas são positivas, mas a maioria são negativas, já que, de certo modo, nos afastam do objeto “livro”.

O fato de notarmos um grande crescimento na produção literária é decorrente da expansão da divulgação proporcionada pela internet. Mesmo que não queiramos, tomamos contato com uma multiplicidade de obras tal que no passado não seria possível. De todo lado despontam e nos chegam às mãos novos escritores e poetas. É um fenômeno impressionante. Não conseguimos dar conta da leitura e acabamos nos dispersando muito. E se olharmos atentamente para essa produção, vemos que ela deixa muito a desejar.

Quando me referi, no começo, à carência de uma literatura engajada, politicamente comprometida com nossas raízes históricas e culturais, não pretendi dizer que a temática seja o aspecto mais importante de um romance. O preponderante será sempre a linguagem, o modo de dizer as coisas. Não adianta optar por temáticas políticas e históricas relevantes e escrever uma obra banal. Até porque a temática não é exatamente o conteúdo. O conteúdo será sempre inspirador da linguagem. Ele é capaz de arrancar de dentro de nós, as expressões que traduzem a nossa interioridade mais profunda e a nossa humanidade, assim como as palavras que escondem por vezes beleza e transcendência inatingíveis fora do veio literário. Então, o que mais me chama a atenção na literatura é isso: a riqueza de linguagem, a forma com que cada escritor se expressa para transmitir a realidade que lhe comove, desperta e assombra. A literatura será sempre a caça da palavra, da frase e da musicalidade. Porque a palavra é o fogo e a água; é o explosivo escondido como uma mina terrestre, acionada pela leitura. A palavra é a arma de que nos valemos para libertar a literatura de seu mistério e fazê-la explodir em miríades de pontos de luz e de sons que penetram em nosso corpo e em nossa alma como energia libertadora. Isso acontece porque a literatura também é música, se transforma nela e também a traduz. E o que vemos no Brasil atual? Salvo os expoentes conhecidos e as exceções que não nos compete abordar aqui, o que vemos é muito lugar-comum, é uma quantidade enorme de escritores e poetas falando de seus próprios umbigos, com um nível de imaginação e de inventividade baixíssimo. E este é um fenômeno que atinge também a música, parceira inseparável da literatura. Não é muito diferente em países da Europa, pelas informações que me chegam, embora Portugal se sobressaia a olhos vistos.




Como tem sido esses dois últimos anos da Covid-19? Que diferenças percebe no enfrentamento da doença nas diferentes cidades e países em que esteve nesses últimos tempos?


Portugal, depois da China, foi e continua sendo um dos exemplos mais bem-sucedidos no enfrentamento da Covid-19. Desde o início, as medidas adotadas pelo governo foram um sucesso aos olhos do mundo. A começar pelo confinamento rápido e outras medidas de isolamento e proteção sanitária, assim como pelo apoio econômico dos afetados em seus rendimentos e atividades de sobrevivência, de modo a garantir, primeiro, uma das mortandades mais baixas da Europa, e segundo, uma transição das menos traumáticas no terreno econômico e social. A população portuguesa se sentiu protegida desde o início da pandemia.

De um modo geral, as políticas adotadas pelas principais nações europeias seguiram mais ou menos os caminhos de Portugal, em particular a França, a Alemanha, a Itália, a Espanha e o Reino Unido, com algumas diferenças, mas com alta pontuação no nível de responsabilidade social. De qualquer forma, dado à inexperiência e as características extraordinárias dessa pandemia, acho que foi feito o possível para combatê-la, inclusive com a rápida produção da indispensável vacina. E a luta continua. Veja-se ainda agora a labuta da França e outros países para imporem o passaporte vacinal, o que trouxe para a arena política uma discussão que está muito longe de terminar. A expulsão do tenista Djokovic da Austrália, proibindo-o de participar do Aberto de Tênis devido a seu negacionismo em relação à vacina, é um dos fatos mais importantes desses tempos nebulosos. Há que se falar também no surgimento do genocida moderno, tipo Trump e Bolsonaro, este último o pior de todos, que não precisam usar armas de guerra para promover seus morticínios.

Melhor ainda teria sido a postura da Europa se não fosse a ação desses negacionistas que despontaram mundo afora, sabotando a ciência e jogando seu papel deletério, como é de todos conhecido. Não há dúvida que o negacionismo foi a vertente criada pelas organizações fascistas em ascensão vertiginosa na última década nos cinco continentes. De modo que enxergo no enfrentamento da pandemia uma íntima relação com a luta democrática e antifascista. Não é à-toa que o negacionismo teve maior crescimento e provocou maiores danos exatamente naqueles países onde a ameaça fascista foi maior e trouxe perigo para o mundo democrático, como os Estados Unidos e o Brasil.

Do ponto de vista pessoal, não nego que fui bastante prejudicado pela pandemia. Fiquei quase dois anos recluso, sem poder viajar, uma das coisas que mais amo na vida. Se não fosse escritor e leitor contumaz, teria enlouquecido. Então, procurei aproveitar da melhor forma possível este período, lendo e escrevendo muito. Concluí e publiquei As Diabruras de Orfeu durante o primeiro ano da pandemia e ainda produzi um novo romance, que deve sair este ano, um livro de contos e uma expressiva quantidade de artigos políticos, literários, resenhas e poemas.





Quais os próximos projetos de escrita, viagens, de vida?


No que tange à escrita, a prioridade é um novo romance, que seria, se assim resultar, o verdadeiro terceiro volume de minha trilogia. Provavelmente o pano de fundo será a Guerrilha do Araguaia. No terreno editorial, pretendo publicar aqui em Portugal um romance já concluído, O Tempo Paralisado, e um livro de contos, ainda sem título. É possível também que agilize o projeto de desmembramento de Adeus, Fernando Pessoa. E quem sabe um livro de poemas?

Afora isso, é viajar e frequentar os amigos, este tesouro da vida. Viajar muito, pelos confins do mundo. Viajar me ajuda a escrever. E escrever é a forma mais prazerosa de viver, até porque pode acontecer em qualquer lugar do mundo. E há que correr, que a vida está chegando ao fim. Conhecer o restante da América Latina, a África de língua portuguesa, em particular Angola, Moçambique e Cabo Verde; o Egito (particularmente Alexandria), a Turquia, o Vietnam, o Laos e o Camboja, entre outros países asiáticos. Retornar à Grécia e aos países europeus, que já conheço quase em sua totalidade; e à China, onde já morei por quase um ano. Os planos são infinitos. Espero ter fôlego suficiente.






Comentários

  1. Gostei muito da entrevista. Diz muto do homem, ser humano bonito, ao qual tenho prazer de conhecer e chamar amigo, recente é certo, mas amigo.
    A parte que "bateu" fundo, na entrevista foi esta
    "A palavra é a arma de que nos valemos para libertar a literatura de seu mistério e fazê-la explodir em miríades de pontos de luz e de sons que penetram em nosso corpo e em nossa alma como energia libertadora. Isso acontece porque a literatura também é música, se transforma nela e também a traduz".
    Grata, meu amigo, por partilhar comigo um pouco do seu saber, fazendo críticas construtivas áquilo que escrevo.
    Um abraço, também por esta partilha, da qual gostei muito.

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