Entrevista de Rose Calza




Em sua experiência como roteirista de grandes sucessos da televisão brasileira, quais as peculiaridades sobre esse tipo de escrita? Sente alguma diferença nos roteiros de antes e os que há hoje nas telenovelas? Aliás, ainda há telenovelas como se viu ou mudaram de formato e linguagem?

 

Um roteiro é uma complexa operação intersemiótica de representação. Ele se estrutura no trânsito onde concorrem, agenciadas, várias linguagens e suas relações entre sistemas de signos, para além da hegemonia do verbal. O roteirista é um multimídia.  Muitos elementos compõem um script: a história, e as indicações técnicas. Um roteiro se endereça a uma equipe. Há vários profissionais envolvidos; “monólogos/diálogos à atores; ao produtor, sua rentabilidade; aos técnicos as informações práticas”. (M. Marvier). Assim,  roteiristas orquestram através de rubricas um corpo de comunicação que movimenta, além dos atores, diretores, cenografistas, editores, cameramen, continuístas, iluminadores, cabeleireiros, maquiadores, figurinistas, músicos, entre outros. “Um filme não é um roteiro, mas sem ele não será coisa nenhuma. ” (Jacques Fieschi). Nos dias de hoje, não há boas notícias sobre este nosso métier: “ser roteirista se transformou numa profissão sem atrativos e que não permite grandes ambições. Ganhando mal, empilhados às dezenas em salas de roteiro em que até o chefe tem pouca ou nenhuma autonomia para conduzir a história, num sistema em que hoje os pareceristas que decoraram regras de manual de roteiro têm mais poder sobre o produto final que as mentes criativas. Evitar que um autor exponha sua visão de mundo, é um projeto financeiro: acabando com a autoria, acaba-se com os direitos do autor por sua obra. Se as coisas continuarem como estão, esse mercado vai entrar em colapso, e não vai demorar, pois, não é só o fim do contrato longo. Isso vem junto com uma nova visão de produção em que o roteirista é apenas um técnico e não mais pode almejar a posição de autor/criador. Tudo ao mesmo tempo, e de propósito, para baratear a mão de obra. É mais uma forma de uberizar o roteirista. Nesse sistema uberizado, não terão direito à ambição de conquistar nem a independência financeira, nem a realização artística”. Não estou de todo pessimista porque acredito que o próximo governo não será inimigo da cultura e o cinema brasileiro voltará a abrigar essas mentes criativas. Um jovem roteirista terá oportunidade de ganhar um edital e decidir 'esse ano não vou precisar entrar numa sala qualquer pra pagar boleto, vou fazer o filme da minha vida'. Se isso acontecer, vai ser bom pra todo mundo, inclusive para as plataformas de streaming, que terão produtos de audiovisual mais diversificados e criativos para licenciar e exibir”, diz João Ximenes Braga.

A telenovela é normalmente uma peça dramática (pode ser a adaptação de um livro ou inspirada em um conto, poema, peça teatral); visa primordialmente o entretenimento, daí permanecer como forma de arte popular. No suporte televisão – ágil difusor de comunicação teve rápida consumação e retorno lucrativo.  Por conta deste largo espectro, promove tendências, influencia costumes, vende produtos, controlada por poderoso marketing.  Este mesmo filão já foi aproveitado em outros veículos, o folhetim/jornal, rádio.   Há telenovelas boas e ruins como acontece com filmes, no teatro, na literatura; elas se adaptam à faixas de horário e tudo   depende do   budget – o que influencia na contratação de atores, diretores, etc.. Mas, há contradições, mesmo aí. O   que se se monitora dentro de uma empresa é o impacto mercadológico do produto.  Não importa o brilhante   texto que não alavanque audiência, que não vende. O gênero telenovela foi atropelado por meios substitutivos de comunicação streaming/on demand (plataformas de filmes, séries, música, documentário), onde dados de áudio e vídeo são enviados para computador, celular ou smart TV. Desalojada da T.V. convencional, a “diversão” ganha concorrência, principalmente em comparação a séries mais ajustadas a um tempo de menor duração -  fator que, na telenovela, já comprometia seu eixo estrutural: em seus primórdios, Redenção, por exemplo, na TV Excelsior, (1966-68), teve 596 capítulos.   

 




 

Cheetah é um livro de múltiplas faces e linguagens, fascinante, diga- se de passagem: o que se percebe também em outros de seus textos, sejam poéticos ou críticos. Fale um pouco sobre essa concepção semiótica presente em sua escrita.

 

Cheetah é de 2016 e é um livro interativo. Precisa do leitor para completar-se. Tem o timbre de seu tempo, foi escrito num contexto em pleno embate analógico X digital.  É um multilivro. Através do contorcionismo monológico/confessional sua homônima protagonista multifatia o relato que pulsa entre diferentes mídias (teatro, cinema, t.v., etc.). Propõe uma outra estratégia de organização do discurso, mais próximo ao paratático fluxo do pensamento que ocorre dentro do cérebro; “ um sistema incerto/probabilístico/semialeatório/quântico”, (Gilles Delleuze), onde se reúnem descontinuidades, simultaneidades (povoando uma rede polivocal - outras línguas, inclusive), interconectas, como em textos hipermidiais.

Na cidade, embutida em seu caminho, portais/interfaces se abrem a cada esquina. Cheetah, outsider é a quebra da ordem, o animal espiritual presente em cada mulher, (itinerante), obcecado por liberdade (iluminação?); quer escapar da jaula – seu próprio corpo - device físico que utiliza em seu metamorfosear-se, aprimorando o feminino selvagem que, atávico, sempre lhe deu direção.    Danação e redenção, Cheetah, felina, não tem medo de perder-se, precisa transcender-se e também ao livro onde mora, onde eu a prendi.  Para escapar, interage com o leitor que a incorpora - para viver “continuando” outra, no outro.  É também um livro didático/pedagógico, mas não é inocente; é um  convite que pretende, quase pornograficamente seduzir, arrebatar, fascinar o receptor a render-se às possibilidades de exploração da linguagem,  extensão de nossos (desejos), de nossos mais insuspeitados sentidos.

    

                                                      




Em que medida, o formato como se diz em literatura está ultrapassando o que se diz? Ao que parece, há certo predomínio da forma sobre o assunto em muitos textos de hoje ou não? O que um texto precisa para que faça sentido ao leitor comum e não apenas a especialistas em linguagem?

 

Brifando, poderíamos dizer que “formato” é a roupa que veste “o que se diz”, assim, uma ovelha é uma ovelha, mas também é carne e lã, ou seja, as divisões fractais e a quintessência que se podem extrair destas “montagens/interrelações” são obtidas através da menor ou maior habilidade de se lidar com a linguagem – motor destas operações. Daí ser possível construir singulares mundos criativo/perceptivos que funcionem como resistência ao que nos oprime, desumanize, esteriliza. Escrever ou qualquer outra forma de arte é um jogo semiótico/cognitivo cuja força criativa está em constante deslocamento de tendências; exige, no mínimo a leitura sistemática dos clássicos - impossível se esquivar do impacto de mudanças e influências. Alguns exemplos: os canônicos “ismos”, os l=a=g=u=a=ge poets (Michel Palmer/Waldrop/Antin/Howe), ou a poesia concreta (os Campos/Pignatari), ou a geração beat (Kerouac/Ginsberg), ou o influxo do mass mídia - (Warhol/ arte pop) que explodiu o eu lírico (no ambiente tecnológico), misturando cultura televisual, do pub, webdigital.  O que é cansativo hoje, com a ajuda decisiva das redes sociais é ver a proliferação de autoproclamados ditos escritores/as, poetas, filósofos/as que, desinibidos, reincidem valores estéticos (redutores, conservadores) – num descarrilado tatibitate romântico/edulcorado/bucólico/pastoril, encaixe mais adequado em livros de autoajuda. Há também um mercado literário – livros viraram produtos, mercadoria; “poemas” proliferam em antologias (mais propriamente iscas que lustram   egos de tais autores/as/poetas; inflam a vaidade à reconhecimento. Os chamamentos por estes atalhos convidam ao ingresso à irrelevantes “academias”, que também proliferam como negócio lucrativo   favorecendo seus organizadores/editores - (muitos de conhecimento crítico equivocado/duvidoso); enfim, tudo funciona como um aceno mais fácil à publicação/visibilidade entre leitores.

 Na verdade, o que um texto precisa para fazer sentido? Repetindo: acho que dentro da teoria geral das representações, é preciso levar em conta que signos - sob todas as formas e manifestações (verbivocovisualdigital) devem ter uma determinação: deixar transparecer um modo de ver e de criar novos mundos sinestésico-sensorais, dizer algo novo, com um modo novo, com um novo olhar, destruindo para recriar.   Ainda está valendo reconhecer a dialética entre o descobrir (heurística) e o inventar - uma das chaves para o novo.  E assim, não somar, fazer a diferença. Pound considera poesia o “novo que permanece novo”.

 





 

Entre Pedaços (Editora 7 Letras, 1997) reúne belos poemas que tematizam os papéis sociais imputados às mulheres, o que acho fundamental em poesia: tratar de nossas mazelas. Houve alguma evolução social, de fato, nesses últimos anos ou não?

 

A mulher que fala Entre Pedaços não é diferente das que me habitam – a que desafia a lógica falocêntrica, a que lê com um lápis na mão e escreve com o corpo femininas histórias (não feministas), as   que estão longe de opor binarismo simplificadores.   Tais mulheres ganham fisionomia no cenário mais contemporâneo, revisitam as sagradas obeahs; arquiteturam com suas vaginas o espaço onde querem fazer real diferença. Já queimamos sutiãs.  Permaneço em meu lugar de espera por transformações, porém, é possível ver progressos; comparemos o mesmo cenário há 40 anos – hoje, uma força de maior envergadura, desloca e descentraliza, para além de homens e mulheres/masculino e feminino, os redutos da libido; anseiam por uma política igualitária /social/sexual, por habitar espaços visíveis de ação/atuação, vislumbrar novos caminhos de convivência, onde possam ser tomadas, com liberdade, decisões, pessoais ou comunitárias.  Mantido o livre arbítrio, todos os seres onde se inclui o coletivo LGBTQIA+, devem conquistar cada vez mais legitimidade, desaprisionando as amarrar do preconceito, para que que perseguições e o ódio ao diferente sejam rarefeitos, porque não, extintos. Penso estarmos mais próximos de escutar a   voz que, work in progress, desconstrua o pensamento primitivo patriarcal. Que   ganhe lugar a empatia, e em definitivo, o respeito   que se deve a cada ser e pares, de como bem quiserem se comunicar.  

 




 

5) Qual a sua experiência ao estudar e trabalhar fora do Brasil? Como somos vistos lá fora? 

 

Vivi em Paris de 2001 a 2007. A fome estava apaziguada, ainda não tinham sido sequestradas a alegria, as cores, as possibilidades do Brasil take off com Brics e Pré-sal (2006), estimuladas as políticas progressistas de bem-estar, visível reconhecimento internacional. Pude responder a perguntas curiosas e entusiasmadas sobre meu país que tendia realizar seu sonho desenvolvimentista. Éramos bem-vindos, celebrados   pela nossa música, culinária, futebol, hospitalidade.  Porém, sou ítalo-brasileira, ruiva de olhos azuis, com passaporte de acesso a benesses sócio intelectuais que amigos de origem diferente, não puderam desfrutar.  A xenofobia, o racismo, a misoginia, a intolerância, o extremismo, sempre foram mantidos num réchaud, eclodiram de forma formidável com a queda de Dilma e se fortaleceram seus poderes de afronta. O que se vê, hoje é o escancaramento de seu “modus operandi”, com os ataques à população, no alargamento da desigualdade social.  O “exótico brasileiro” também se revelou.  Perdemos o pitoresco que, na verdade, era de fancaria; nossa imagem -  a brasilidade, amena e cordial, juntamente com a do atual governo (privatizações, escassez de recursos públicos, desmatamento, ameaças à democracia) expõem aqui e no exterior, um Brasil convulso, às raias da delinquência, irresponsabilidade, incompetência.  Enquanto a maioria segue desvalida, permanece o aval de muitos (metade do país) para poucos nadarem de braçada em desperdício.





 

6) O Brasil da Covid-19 e do atraso, da fome e da morte: como tem sido esse tempo e quais as esperanças para o amanhã?

 

A política neoliberal instaurada mais propriamente depois do golpe de 2016 abriu as portas ao extremismo.  O devastador fenômeno Bolsonaro, também ocorre no mundo, mais recente revive na Hungria, insinua-se na França, despita-se como democracia no império americano. Do radicalismo autoritário ao fascismo racista é só um passo. A morte, (genocídios, covid, indígenas, refugiados), acomete também a cultura, ciência, arte, religião, educação, num mundo onde, estupefatos assistimos à degradação da ética civilizatória, onde a própria morte (dor irreparável, ferida profunda) despojou-se de seu aspecto trágico e entre guerras só importa ao balcão de negócios -  no caso, os bombardeios na Ucrânia, on line. O Brasil, privilegiado o agronegócio, abriu as porteiras (vaticínio concretizado de ministro) aos argentários do erário, aos consórcios que estabeleceram escaramuças milicianas em todos os setores promotores de lucro – um projeto, uma campanha até agora muito bem-sucedidos. Estamos às vésperas de eleições. O ambiente tenso e violento é movediço. Elas se realizarão?  Mesmo com a mudança da sigla partidária, que mudança ocorrerá sem a renovação do Congresso?  Há lugar para a esperança se estamos acuados e com medo? Permanecemos pressionados por sub-reptícios interesses políticos, econômicos, midiáticos, nacionais e internacionais. Sim, queremos de volta o Brasil aos brasileiros, como aos argentinos, as Malvinas, como quer a China, Taiwan, como quer a Rússia, segurança, soberania influência, mas não sabemos se não estará bem próximo um cenário muito mais nefasto de dependência e exploração a se estabelecer por aqui, antes mesmo do término deste mandato governamental. De qualquer maneira, parafraseando Baruch Espinoza, “ não há esperança sem medo, nem medo sem esperança”.

 

Rose Calza

Mini Bio

É Livre Docente em Literatura Comparada - Centro de Letras e Ciências Humanas - Habilitation à Diriger des Recherches (HDR) - Université de Provence, Aix-Marseille I, Centre d´Aix, France, 2004; Mestra (1966) e Doutora em Comunicação e Semiótica, (1991), PUC-SP; foi Professora Assistente Doutora do Dep. De Arte da ComFil, PUC-SP; foi Coordenadora do Curso de Comunicação Social, (Publicidade/Propaganda), PUC- SP.; tem experiência nas áreas de Televisão, Cinema, Narrativas Transmidiáticas, com ênfase em Comunicação e Semiótica. Como roteirista (Televisão): TV Globo, TV Manchete/TV Plus - em Telenovelas: Top Model, Despedida de Solteiro, 74.5, Uma Onda no Ar, (entre outras); em Teletema: Amor de Menino; em Você Decide: O Matador, Almas Gêmeas, O Filho da Outra, Em nome do Pai. Foi colaboradora da net Revista Trópico (www.uol.com.br); livros publicados: Cheetah, (multilivro), 1ª Ed. SP.: Giostri, 2016; Entre Pedaços, (poesia), Ed. Sette Letras, RJ, 1997; O que é Telenovela, Col. Primeiros Passos, Ed. Brasiliense, SP,1996; Contemporary Brazilian Theory, (org.), California University, San Diego, USA, 1995; A Garota que Não Gostava do Nome”, (multilivro, no prelo), 2021; “EuAmo/res”, (poesia, no prelo).

 


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