Geometria do Acaso, por Krishnamurti Góes dos Anjos.

 

Geometria do acaso


Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)





PRELÚDIO: Por um desses acasos da vida, vi-me às 6 horas da manhã, aguardando ansioso um famigerado táxi que me levaria ao aeroporto para mais uma viagem a trabalho. A mochila pesada no ombro entupida de projetos estruturais e arquitetônicos, trenas, cabos e o notebook. O porteiro, de olhar sonolento entrega-me um envelope. Dentro, o livro “Geometria do acaso” de Luciano Lanzillotti. Muito bem, afinal! penso comigo ao tempo em que embarco no táxi.

Nas nuvens, figurativa e literalmente, vou lendo o senhor Luciano que lança sua obra de estreia na Literatura com um belo livro de poemas a que deu o nome de “Geometria do acaso”. Reuniu 120 poemas de sua lavra e dividiu-os em quatro partes distintas a saber: Esfera, Pirâmide, Cubo e finalmente, Prisma. Figuras da geometria às quais estou muito familiarizado em virtude da minha profissão e que, em uma primeira mirada, representam metaforicamente as questões de “formas” da existência. Questões que sempre estiveram presentes em nossas indagações, desde tempos imemoriais, mesmo antes até das concepções geométricas propriamente ditas.

O tempo e a memória que nada mais é, do que as marcas que o tempo em nós imprime estão bem concentradas nos poemas da primeira parte, a parte esférica, para usar a expressão do poeta. Colocados de modo a nos induzir à grave pergunta e consequente constatação: como fugir, como evadir-se de dentro de uma esfera? Não há como. Estamos presos inexoravelmente à memória e ao tempo. Mas já aí, o poeta nos diz a que veio, e de forma contundente, ao menos em um dos poemas, imprime uma pátina – aqui entendida como aquela oxidação dos sentimentos que o tempo impõe e que acarretam a mudança gradual de perspectivas decorrentes da ação do próprio tempo e da luz. Luz é também uma palavra importante nessa obra, voltaremos a isto adiante. Interessa salientar porque melhor traduz a intenção, consciente ou não, plasmada no livro como um todo, e que não é simplesmente obra do acaso.

Poema: ÁLGEBRA

A vida se mede com alguns cálculos:

anos em dezenas; / propriedades em metros; / dinheiro em milhares; / amores em bodas,

mas a medida vaga do sorriso / se perde entre alaridos.

Desde tempos distantes / gostamos de juntar comida, / pilhas, roupas, vinho; / nosso cérebro vestiu essa fantasia.

Acreditamos que ao juntar, / medir, sistematizar;

marcaremos um tempo / para além do que nos foi entregue / em frágil vidro.

Esquecemos, entretanto, que ele / já veio trincado.

A “trinca do vidro” se amplia e somos convidados a passar por ela para adentrar em uma pirâmide. Não a egípcia, mas a pirâmide social brasileira onde estão postas as variáveis dessa nossa imensa equação algébrica. Uma álgebra social representada por equações em que as incógnitas, leia-se o povo brasileiro, sempre foi e continua sendo submetido às operações de subtração, divisão, exploração e alheamento, para a única, exclusiva e constante potenciação (isto mesmo, o resultado de um número multiplicado por si várias vezes) da exploração capitalista.

Reconhecemos facilmente as variáveis postas nos belíssimos poemas do senhor Lanzillotti. Quadros pungentes de como vivem os pobres-diabos de nossas cidades. O X da vida de um motorista de ônibus premido a dobrar o turno de trabalho, O Y, da vida de uma vendedora ambulante de limões grávida, o Z de meninos favelados que catam lixo em nossas ruas. Todo um alfabeto de variáveis, onde entram o peixeiro desdentado que apregoa sua mercadoria, o guarda-noturno que só tem um apito como arma, o menino magrinho que faz malabares nos sinais de trânsito, o homem-placa que almoça sentado em um meio-fio, e até as putas de beira de esquina que “liberam almas e / vendem unicamente corpos”. Todos, nós e ‘eles’, “debutantes de sonhos e sociedade inacessíveis”.

ROCINANTE

Carrega três filhos no carrinho, /em busca de reciclados.

À cada esquina, recolhe algo / útil à venda.

O cão, majestosamente, / à frente, abrindo caminho / entre pedestres:

como se fosse cavalo árabe.

Ao menos assim, sonha a criança, / com um fantasioso chicote em mãos:

Vai, Rocinante, vai!

Nota do resenhista: o substantivo “Rocinante” significa: cavalo sem vigor.

Já a terceira parte da obra, parece, a princípio, focar o olhar poético para os cruciais problemas relativos à natureza e o que dela andamos fazendo. Entretanto, se expande e envereda por outros planos. Ora a focalizar como estamos a nos relacionar com as tecnologias alienantes, os objetos e o nosso amor-próprio, levando o leitor à paragens outras que flertam com o bom humor quando aborda as atuais relações afetivas. Andam depredadas a mais não poder como lemos em “Casamento”, “Mentiroso” e “A carta”.

OCEANO

No mar / revolto / das comunicações

busco me agarrar / a algo fixo:

são tantas / as mensagens / que o silêncio / vai se eximindo

de criar / ponte / entre verbo / e / diálogo.

SHOPPING

Andam em círculos / desorientados pelo consumo.

Tantas coisas lindas / em um mesmo lugar: / Palmeiras, orquídeas e / rios com peixes.

Aqui se tem o Éden, Taj-Mahal / paz de espírito e / o que mais se poderia desejar?

ACADEMIA

Olha-se fixamente / enquanto faz esteira.

Seus contornos trabalhados à exaustão, / revelam desejo de superioridade / sobre o tempo.

Com fones em ambos os ouvidos, / canta mergulhada na realidade sonora.

Terminada a sequência, recolhe pertences / em bolsa de luxuosa marca / e volta para casa solitária.

Todos nós sabemos, ou fazemos vaga ideia, das formas que nos cercam no mundo material. Parece-nos que o X da questão desta obra está em seu título. No adjunto adnominal, “acaso” que é termo acessório utilizado para atribuir, determinar, modificar, e transcender o substantivo “geometria”. Merece registro que o autor é Licenciado em Letras pela UNISUAM, Mestre e Doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ, e não só pesquisou, como escreveu sobre as poéticas de vários autores, notoriamente as de Manuel Bandeira e Ruy Espinheira Filho. Portanto sabe muito bem o que está fazendo e o faz de maneira excepcionalmente bela e profunda justamente em o “Prisma” última parte que vale de per si, toda a obra, e voltamos então a refletir mais amplamente sobre a questão da “luz”, mencionada no início do texto.

Mas que diabo é “Acaso”? Vem do latim a casu, ou seja, algo que surge ou acontece a esmo, sem motivo ou explicação aparente. Fica-nos na consciência o fato inconteste de que o que pode ser considerado acaso num sentido, pode não ser considerado acaso em outro. Isto nos remete lá para a filosofia da Grécia antiga onde viveu um tal de Demócrito, que segundo reza a lenda, existiu uns séculos antes do Cristo. Pois muito bem; esse malucão andou pensando sobre acasos e aleatoriedades. E dentre outras conclusões chegou à aleatoriedade do desconhecimento de causas. Que seria apenas um outro nome para a ignorância humana acerca das causas determinantes de uma dada estrutura ou de um dado fenômeno e, consequentemente, de nossa incapacidade de descrever, prever ou controlar. Seria um determinismo disfarçado? Tempos depois, surgiu outro alucinado, matemático, astrônomo e físico, que organizou a astronomia matemática. Um tal de Pierre-Simon Laplace, no século XVIII andou esbravejando alucinadamente que: “se imaginarmos uma inteligência capaz de conhecer todas as forças que animam a Natureza e conhecer o estado de todas as partes da qual ela é composta - uma inteligência suficientemente grande para analisar todos esses dados - então ela seria capaz, de numa fórmula, expressar o movimento dos maiores corpos do universo, bem como o dos menores átomos. Para tal inteligência nada seria incerto e o futuro, bem como o passado, estariam abertos a seus olhos.” Iluminou mais o assunto, mas o golpe de misericórdia no racionalismo matemático, veio de ninguém menos que Albert Einstein (século XX), a protestar com a famosa frase: Deus não joga dados! Parafraseando Shakespeare; há sim mais mistérios entre o céu e a terra do que a vã geometria dos homens possa imaginar.


GEOMETRIA DO ACASO

Acaso é aquilo que ocorre sem se esperar: / amor, poema, livro.

Algo planejado / não será também / o acaso?

A tônica da vida beira a incerteza / e a matemática não dá conta / com variáveis.

Há então a geometria do acaso, / embora não se encontre definição / em livros do gênero.

Por ela e só por ela / é possível se compreender / que a vida não se mede, / a vida se gasta.

É na aparência da simplicidade dos versos, que aquilo que reputamos como invisível, imprevisível ou misterioso, se revela. Com efeito, o leitor se emociona com a carga de lirismo e sensibilidade que permeia essa produção ímpar.

ROSA

Não é só matiz e pétalas / que dignificam a planta.

Ainda que maltratada, / em pouco adubo, água, / coloração dispersa / e sem enxertos.

Se ela sobrevive é porque algo / no íntimo, luta, bravamente / para ser rosa.


Luciano Lanzillotti se mostra em toda sua simplicidade prosaica. Sempre atento aos olhares do mundo e para o mundo, tece fios de um cotidiano real, ao mesmo tempo em que aponta para uma trama de diversidades que são substância e conteúdo poéticos, na medida em que, ao realizar seus poemas, vai registrando um universo de percepções e sensações concretizadas a partir de relações inesperadas (acasos?), que transformam palavras em conteúdos impressivos e sensoriais, para emocionar o leitor. Para o emocionar, e também para que raciocine. Aí a luz, ou por outra, a geometria do não-acaso!


Livro: “Geometria do acaso”, Poesia de Luciano Lanzillotti – Editora: Dialética – São Paulo – SP – 2021, 144 p.

ISBN: 9786589873426

Link para compra e pronto envio:

https://www.facebook.com/luciano.lanzillotti


(*) Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema e À flor da pele – Contos. Participou de 28 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 300 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.

Comentários