Segunda entrevista de Iacyr Anderson Freitas

 





A lavra inicial de sua poesia, reunida em Primeiras Letras, volta-se para temas e linguagens bastante maduras. Se ainda pode ser percebida, aqui e ali, a influência de outros grandes escritores, a liga entre os poemas, contudo, é a arraigada desesperança existencial. Acredito que há até mesmo nos seus belos versos iniciais, aqueles da juventude, o prenúncio dessa arte poética que alia labor estético à profunda investigação do estar no mundo. Em termos literários ou existenciais, você concorda com a célebre frase de Machado de Assis, para quem "o menino é pai do homem"?

 

A refinada ironia machadiana, nas Memórias póstumas de Brás Cubas, soube impor seu traço melancólico e demolidor ao célebre verso de Wordsworth, flertando ainda, de modo crítico, com o determinismo que tanto marcou os debates intelectuais do século XIX. E é importante salientar que o Bruxo do Cosme Velho passava ao largo da igreja de Auguste Comte... Mas esta é mesmo a grande literatura, que nas mãos de um mestre absoluto, como é o caso do referido exemplo, tudo transforma e transcende. Quanto a meus primeiros livros, se “a arraigada desesperança existencial” já os denunciava, creio que a situação piorou bastante agora, que estou para cumprir a curva dos sessenta anos de idade. No fundo, se retirarmos pelo menos uma pequena parte das máscaras do nosso adestramento psíquico, aquele que nos capacita para a sobrevivência, se nos voltarmos fundamente para a extrema fragilidade e para os sombrios paradoxos da condição humana, percebemos o quanto a realidade é assustadora. Não apenas a certeza da morte é terrificante, mas a própria vida também. A produção lírica jamais deixou de colocar em foco tais paradoxos, jamais deixou de rasgar as máscaras das convenções sociais e das mentiras tranquilizadoras. Sob este aspecto, seja nos meus livros de agora ou lá do início dos anos 1980, o mencionado “prenúncio” é apenas a permanência de um leitmotiv, digamos assim, que orienta a poesia desde a noite dos tempos.




Parece-me que parte de sua obra está impregnada pela busca do passado, entretanto sem tentar restaurá-lo ou revivê-lo: a memória se mostra contagiada por espaços desabitados e pessoas falecidas. Tampouco se pode dizer que isso é algo das publicações mais recentes, da assim dita maturidade poética ou dos anos que passam, pois ocorre pelo menos desde O aprendizado da figura, e ainda se pode perceber em Estação das clínicas.


A memória é o lugar por excelência. Somos o que ela, parcial e sublime antologista, nos entrega com o passar dos anos. Ocupamos o espaço a que ela nos destina. Todavia, em decorrência desse mesmo passar dos anos, é natural que seu conteúdo – assombrado por todos os tipos de fantasmas, mnemônicos ou não – esteja ao mesmo tempo pleno de referências e infelizmente vazio de sentido e de esperança. A realidade será sempre um fardo duríssimo para o eu e para a memória. O avanço contínuo e inabalável do próprio tempo, desse Crono mecânico e cruel, incapaz de fazer concessões à miséria humana, reduz gradativamente as possibilidades efetivas de esperança. É natural que a poesia reflita esse dilema fundante: ela é filha de Mnemósina, a personificação da memória, a mãe de todas as musas.




Uma das coisas que me fascina em sua escrita é o domínio das formas fixas, como ocorre em Ar de Arestas, livro-poema constituído apenas de quartetos, em rimas alternadas e metro de sete sílabas – a célebre redondilha maior. Por outro lado, muitas de suas obras estão marcadas pelo verso livre. Em ambos os casos, no entanto, há pleno domínio dos recursos estilísticos. O que você tem a dizer a respeito disso? 


Tenho mais de quatro décadas de dedicação ao verso. No decorrer de todo este período, para falar a verdade, jamais senti segurança alguma diante da folha em branco. Creio que quando esta segurança for conquistada, meu percurso autoral terá chegado ao fim. Assim sendo, temo que o que você chame de “domínio dos recursos estilísticos” – com base nos exemplos de formas composicionais distintas em minha obra – não passe desta vontade íntima que tenho de encontrar a melhor dicção lírica, seja em verso livre ou não. Sem segurança alguma, claro, e sempre com enorme trabalho, mas sem abrir mão da convicção de que certas expressões reclamam determinadas formas e que, em poesia, todas as formas são conteúdos.




Ar de Arestas e Estação das Clínicas têm projeto gráfico arrojado e demonstram muito cuidado no que se refere à escolha do papel e da capa etc. Quanto ao primeiro livro aqui citado, que inclui o ensaio fotográfico de Ozias Filho, que relações você vislumbra entre a poesia e as artes plásticas?


Sob determinados aspectos – e penso aqui nos atuais horizontes de recepção fornecidos pela experiência lírica –, a própria linguagem é, em sentido amplo, imagem. E a ficção, no caso, imagem burilada e elevada à enésima potência. As redes que os poetas lançam ao mar da realidade retornam à praia com representações verbais capazes de mesclar imagens, símbolos, sinédoques, metáforas, metonímias e alegorias. Às vezes é muito difícil identificar, classificar e organizar esses tropos de similaridade e de contiguidade – e os poetas são os primeiros a não conferir importância alguma, no processo de criação textual, a este trabalho metodológico. Dentro do caldeirão verbal da experiência poética, bem ali no olho do furacão, no ápice voltaico da elaboração lírica, tudo pode ou deve ser imagem, inclusive imagem acústica. Há poetas, por exemplo, cujas obras são derivadas de diálogos imagéticos bem demarcados. Ezra Pound colocou em destaque essa característica, aliás, ao desenvolver o conceito de fanopeia. A belíssima obra de João Cabral de Melo Neto, por exemplo, se realiza em plenitude quando ata as pontas desse cordão composicional que liga fanopeia e logopeia, caso queiramos prestar tributo, aqui, aos polêmicos conceitos de Pound. Em suma: poesia e artes plásticas (e música e... filosofia e... religião e...) possuem vínculos milenares extraordinários.



Sua ensaística também é bastante relevante e bela, diga-se de passagem, demonstrando olhar peculiar sobre a escrita alheia, mas com um tempero fundamental, já que você é um exímio leitor e construtor literário. Como exemplo, cito seu livro sobre Ruy Espinheira Filho, que, ao que me consta, será reeditado em breve. 


Através da parceria editorial ocorrida entre a Fundação Casa de Jorge Amado e a EDUFBA, em 2001 veio a lume meu livro As perdas luminosas: uma análise da poesia de Ruy Espinheira Filho, inserido na “Coleção Casa de Palavras”, que incluía títulos de autores como José Paulo Paes, Mário Faustino, Haroldo de Campos e outros. Embora tal livro tenha obtido considerável acolhida crítica à época – conquistando o 1º lugar no Prêmio Nacional Centenário de Oscar Mendes (Ensaio), promovido pela Academia Mineira de Letras em 2002 –, alguns problemas redacionais específicos me incomodavam naquela edição, bem como a ausência de desenvolvimento de determinadas linhas de abordagem, que ali mal foram esboçadas ou sugeridas. Problemas decorrentes de minha culpa, minha máxima culpa, é importante frisar. Como o escritor Ruy Espinheira Filho – um dos maiores poetas vivos da lusofonia – fará oitenta anos de idade em dezembro deste ano e como, até o momento, após duas décadas da publicação original, o citado livro continua sendo o único, em edição comercial, integralmente dedicado à lírica dele, eu decidi reformulá-lo por inteiro – alterando até mesmo o título, pois se trata de um trabalho distinto, sob muitos aspectos. Com isso, aquela obra original não será mais publicada, ficando em seu lugar o novo estudo, a meu ver muito mais abrangente e profundo, denominado Sob céus de assombro: as perdas luminosas na poesia de Ruy Espinheira Filho. O longo trabalho de revisão e estabelecimento do texto final deste novo livro foi concluído há pouco. Agora eu estou na velha batalha, a de sempre: encontrar editora! Não será fácil, infelizmente. Mas eu não vou entregar a rapadura...




Trinca dos traídos e El buitrero, seus livros de narrativa literária, demonstram um lado pouco conhecido do escritor Iacyr: a profunda habilidade com a prosa de ficção. As duas obras tratam de temas ácidos, desesperançosos, bem como do acaso que permeia a vida humana. Às vezes as poucas ações se desenvolvem apenas dentro da consciência dos personagens. Seu único livro de contos foi publicado há quase vinte anos, no entanto. Todavia, é importante destacar que Trinca dos traídos arrebatou a Menção Especial na 46ª edição do Prêmio Literário Casa de las Américas, sendo também inserido na lista de obras literárias de leitura obrigatória para os vestibulandos da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-EDESP). Você por acaso possui, nas gavetas, material para a publicação de uma nova coletânea de contos? 


Para dizer a verdade, eu não sei se tenho em minhas gavetas material suficiente para um novo livro de contos. A recepção obtida pelo Trinca dos traídos me surpreendeu muito. Considero-me irrevogavelmente poeta. Amo a prosa de ficção, amo os contos de Machado, Tchekhov, Maupassant, Pirandello, Kafka, Borges, Cortázar, Juan Rulfo, Dino Buzzati, Miguel Torga, Guimarães Rosa, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, para citar apenas alguns dos meus muitos autores de cabeceira... aqueles já falecidos. Mas considero-me poeta – e estou com um novo livro de poemas no prelo, intitulado Os campos calcinados. Como me dediquei bastante à elaboração desta obra, assim como à finalização do meu renovado ensaio sobre a lírica do Ruy Espinheira Filho, ainda não tive tempo de revisar tudo o que possuo de prosa nas gavetas. Talvez dê um livro, sim, mas ainda não tenho certeza.




Sua obra foi amplamente resenhada, lida e comentada por alguns dos grandes nomes da literatura e da crítica brasileiras, inclusive sendo traduzida e premiada inúmeras vezes. Apesar disso, você relatou acima a “batalha” que ainda precisa travar com (e muitas vezes contra) os editores... Falávamos há algum tempo sobre a profunda desmemória do Brasil em relação aos seus artistas. Como você se sente diante de tudo isso


Apesar de tudo, apesar de todas as dificuldades que ainda enfrento para publicar meus livros, eu tenho a absoluta certeza de que minha obra obteve até o momento uma acolhida muito superior ao mérito – e isso ainda me surpreende muito. Falo com absoluta sinceridade. Para o mercado livreiro, a poesia não existe. Como fato ou cifra comercial, a poesia é uma peça de ficção, literalmente. Logo, minhas mais alentadas expectativas, no que se refere a leitores e leituras de meus títulos, jamais superaram os números expostos por Brás Cubas na introdução das suas célebres memórias de além-túmulo. Quanto às excelentes traduções de minha obra – e ainda neste ano deverá ser publicada em Lima uma versão muito bem realizada do Trinca dos traídos, tendo em vista o empenho ímpar do tradutor e poeta peruano Renato Sandoval Bacigalupo –, eu também só tenho a agradecer. Já em 1952 Jorge de Lima afirmava que a literatura brasileira era então “uma das mais fortes, das mais construtivas do mundo atual. Infelizmente a língua portuguesa nos isola perante os escritores de outras línguas. Se fôssemos traduzidos, certamente teríamos uma influência universal”. A partir daquele ano – já repleto de problemas, como o próprio Jorge de Lima denuncia – e para azedar mais ainda o caldo, a situação veio paulatinamente se deteriorando, por conta do modo como o nosso país envidou amplos esforços no sentido de invisibilizar a sua própria literatura. Historicamente nunca tivemos uma política efetiva de leitura e de valorização do livro – uma política capaz de abrir caminhos à literatura, dentro da injusta e paradoxal sociedade brasileira, em todos os seus estamentos, mas com os olhos voltados para as suas formas plurais de expressão. Há pouco, por incrível que pareça, quando o atual governo tangenciou o tema, ainda que de passagem, o que veio à tona foi... a tributação do livro! Ou seja: se no Brasil a aquisição de exemplares está restrita às camadas sociais que ainda não se encontram sujeitas, a priori, ao limbo econômico imposto pelo sr. Paulo Guedes à maioria da população, vamos resolver esse grave problema... aumentando o preço do livro! Genial! O que o nosso espanto e o nosso riso não podem deixar de considerar é que “soluções” desse tipo, apesar de absurdas, são intencionais, foram “bem pensadas” por aqueles que parecem nutrir pelo livro – e pela democratização da cultura e do conhecimento – o mesmo desapreço que nutrem pelo efetivo combate à desigualdade social no Brasil.

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