Geometria do Acaso, por Mário Sérgio Bággio

 

A geometria é assunto com poder de sedução

Foto por Katerina Holmes em Pexels.com

“O verde, os bichos, a água, o ar, o firmamento: precisamos de tudo isso para continuar vivendo e, no entanto, não somos generosos com o que nos mantém em pé neste planeta”

O termo “geometria” sempre me faz lembrar de arestas, ângulos, formas, superfícies, áreas, medidas, limites, dimensões, circunferências, catetos e hipotenusas. Confesso: um assunto árido e pouco sedutor, para dizer o mínimo. O título da obra de Luciano Lanzillotti causou-me essa impressão, a despeito da poesia contida no adjunto adnominal “do acaso”. A leitura, já no início, felizmente, desfez minha impressão. Cheguei à página 142 convencido de que, sim, a geometria é assunto com poder de sedução e, sim também, ela pode gerar poesia de grande qualidade. “Geometria do acaso”, coletânea de poemas de Lanzillotti, comprova isso. É um livro amoroso.

Com senso de pertinência, o poeta dividiu sua obra em 4 partes: Esfera, Pirâmide, Cubo e Prisma. Em cada uma, abordou com propriedade os temas a que se propôs.

Em Esfera, o tempo, sua passagem e sua infinitude são os protagonistas. A infância, a cidade de nascimento, o convívio com a família e com os amigos, o passado, as lembranças (doces ou não), alguma amargura — está tudo lá, sem arestas secas nem ângulos pontiagudos:

“O grande passatempo era aguardar / pelo chocolate / que me traria do trem. / Era um doce humilde, irrisório / mas que despertava em mim / a ilusão de ser amado.” (“Infância”).

“A culpa não é do relógio, / máquina indefesa: / parafusos e molas / Que sabe do tempo, o relógio / e de sua fria nostalgia?” (“Molas”).

Em Pirâmide, o aspecto social dá o tom, a régua e o compasso. Não há figura geométrica mais apropriada para falar desse tema, considerando-se um país rico e ao mesmo tempo miserável como o Brasil, em que uma pirâmide é a representação perfeita de nossa desigualdade:

“Horário, cobranças e faltas: / tudo igual ao final do mês, / inclusive a mais-valia. / Vende-se o tempo e nunca se sabe / o que farão com nossas sobras.” (“Mais-valia”)

“O menino parado à porta do mercado / não quer dinheiro, apenas três limões / para trabalhar malabares. / O convido a entrar para que / os escolha. / Em pouco tempo, sou abordado / para que saibam se está comigo. / Franzino, malvestido e / olhos baços de quem não entende / nada de metáforas. / A vida é dolorosa e a poesia / não pode com isso. / Pago limões, chocolate, / despeço-me envergonhado / por tudo o que tem passado. / E sei que ele / nunca mais sairá de mim.” (Três limões”)

Cubo, o terceiro segmento, põe na berlinda a natureza e a forma com que nos relacionamos com ela. O verde, os bichos, a água, o ar, o firmamento: precisamos de tudo isso para continuar vivendo e, no entanto, não somos generosos com o que nos mantém em pé neste planeta. Aqui também tem lugar a maneira com que nos relacionamos com as coisas, os objetos, a modernidade:

“Estranho amor esse que alguns humanos / têm pelos pássaros: / poluem ar, água, árvores / e depois prendem seus cantos / atrás das grades.” (“Gaiola”)

“Pesquisa confirma: / se lê, / se ama, / se vive / menos. / Estranhamente, lojas de celulares / estão sempre lotadas. / O que quererá / nos dizer / isso?” (“Pesquisa”)

Prisma, o último segmento, propõe um outro olhar sobre as relações e a existência humana na Terra. Renovado, arejado, harmonioso, esperançoso: um olhar visando à perpetuação de nossa espécie. A meu ver, uma maneira primorosa de encerrar a coletânea:

“Do assento percebo / a senhora entrar no ônibus. / Tento fazer contato via olhos / para lhe oferecer o lugar. / Quando consigo iniciar a frase, / sou imediatamente cortado: / descanse, meu filho, / é você quem está vindo do trabalho.” (“Lição”)

“Aviso aos interessados: / voo / permanentemente / cancelado. / Não pretendo deixar / esse sol, / esse mar. / Nossa senhora dos destinos, / remarque minha passagem / em cem anos / no mínimo.” (“Voo cancelado”)

Flertando muitas vezes com a prosa poética (gosto imensamente desse estilo), Lanzillotti produziu um livro “redondo” e importante, cuja leitura recomendo fortemente.

Mário Bággio (escritor e jornalista)




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