Geometria do Acaso, por Rose Calza

 

É poesia a prática de quem incessantemente a aprimora

Foto por S Migaj em Pexels.com

“já que o poeta e a poesia não podem se preocupar em desmanchar tudo, provocar estragos”

“Geometria do Acaso”, de Luciano Lanzillotti, São Paulo, Editora Dialética, 2021 .

A que ou a quem atribuir a complexidade ou nexo diante do randômico fluxo dos acontecimentos? Ao Tempo? Ele só nos carrega para o futuro, segundo leis da Física e mesmo citada no texto, 20 vezes, a palavra (e derivados) ainda parece encobrir enigmas.

Se tomarmos o título, de antemão, temos “geometria”, um braço da matemática que se ocupa de área, comprimento, volume e define a terra = geo + metron . Porém, em “Geometria do Acaso”, embora o primeiro termo se arrogue “preciso”, aqui insiste em medir o que não tem medida, nem nunca terá, não tem remédio, nem cura terá, o que não tem receita” (O Que Será?, Chico Buarque). É o que 144 páginas sugerem, num livro que se soma em ESFERA, cujo conteúdo é de natureza gestacional, placentária, PIRÂMIDE, onde se redesenha um fundo de crítica social, CUBO, na pressão e compressão das coisas e PRISMA, o entrever fractal (dos fatos) que se repete por ângulos inusitados, particulares, na visão do poeta.

Num esforço de escaletar em síntese a que o texto se propõe , o que temos, ao longo das páginas constituintes: um poeta “cego”, na 19; o estar dentro e fora, placentário, na 20; a inexorabilidade do tempo, isentada a culpa de quem o mensura, na 21; o moleque que estica as pernas, resistentes à idade adulta, na 22; a família e seu espectro de dominação, na 23; o fazer e desfazer do afeto, segundo o cronômetro , na 24; privilegiados arquivos, na 25; a impossível conta , na régua do tempo, na 26; buracos do esquecimento, na 27; pais e filho- flashes de memória, na 28; a matéria corporal que se plasma em direção ao nada , na 29; homem inseto drummoniano, na 30; boring e medíocre- um diagnóstico, na 31; obeah, na 32; a imensidão de amor que contém o açúcar, na 33; as supercapas nem sempre disponíveis, na 34; o lúdico em PB, na 35; um animal sempre por perto, na 36; há muita coisa em fundos perdidos, na 37; a possibilidade de mudança , na 38; o tempo que desgasta e voa , na 39; o corpo ( água-viva) em homeostase, na 40; a infalibilidade do tempo, na 41; alteridade como solução, na 42; o instável valor das etiquetas, na 43; a megalomania à custa de dorsos cansados, na 46; para alguns não há brilho, na 47; o sapiens domesticado , nas 48/49; um pouco de Marx, na 50; gente oprimida , na 51; a criança confusa, entre reinos, na 52; irônica navidad, na 53; lucro , mesmo na miséria, na 54; Fritz Lang e máquinas , na 55; a beleza da urbe que a ninguém pertence, na 56; uma diacronia da tech, na 57; operístico gari, na 58; o boia-fria da cidade, na 59; corpos que se alugam , na 60 ; desigualdade social com culpa, na 61; fabular: cigarra e formiga revisitadas, na 62; a noite vigiada e mal paga, na 63; na TV., a má notícia que a todos conforma, na 64; impossível sonho de consumo , na 65; a máscara alegre que sempre vende, na 66; cicatrizes , em todo tipo de pele, na 68; humanos/psicopatas, na 69; hábitos que alimentam , na 70; água suja que rende, na 71; grito vegano , na 72; pátrio poder , não importa a espécie, na 73; cães abastados , na 74; a monotonia do agrado , na 75; nada se perde, na 76; possível tilt, na 77; o movimento ordenado pela regra , na 78; o lado rupestre do medo, na 79; bíblicas pistas falsas , na 80; sobrenatural – cenário que alimenta a fé, na 81; a ironia de alcançar o satori , na 82; o alegórico no espírito judaico-cristão, na 83; o doce e salgado do ritual, na 84; somas que não chegam ao total ,na 85; desentendimento epistolar, nas 86/87; um tom de morte , na 88; restos em inúteis objetos, na 89; melhor acordar, na 90; o despojamento do invólucro, na 91; endereços incertos, na 92; às vezes , a caretice da vida, na 93; somos o que consumimos , na 94; a pergunta que vai para o pen-drive ,na 95; saudações da I. A. , na 96; mudam-se os tempos, as vontades, na 97; nova nomenclatura , na 98; morrer em novo formato, nas 99/100; nostalgia de sigmanacis, na 101; somos todos sencientes, na 102; a hipocrisia de outdoors, na 103; o repressor sedutor ( Síndrome de Estocolmo) , na 104; I.A/ Big Data, infômatas ( Siri/Alexa) que controlam, na 105; quando muda a linguagem , muda a visão de mundo , na 106; narcisos e o mundo tech, na 107; boys de Chicago , na 108; desamparo, na 109; psicopatia precoce, na 110; regalias para poucos, na 111; o essencial, na 114; o drama metafísico da existência, na 115; autorretrato/selfie, na 116; o poema é um animal , na117; never give up , na 118; o desperdício, na 119, um pouco de Lispector, na 120; plantão de maternagem , na 121; luz refletida = paleta, na 122; o dia quando fecha o expediente, na 123; declaração de amor 1, na 124; cânons, na 125; abyssus abssum invocat, na 126; ver pelo avesso, na 127; declaração de amor 2, na 128; savoir faire, na 129; amor em prato cheio, na 130; tarefa incluída ao masculino, nas 131/132; tabula rasa , na 133; entropia , em 134; a lua é fake, na 135; para cada qual o seu cada um , na 136; esperando Godot, na 137; entre figuras de linguagem , na 138; elástico , na 139; ser homem é mais que isto, na 140; tech zeitgeist, na 141; sequer reembolso, na 142.

Dito isto e se é poesia a prática de quem incessantemente a aprimora se a pratica, resta recolher o drone e espiar o poeta em seu ofício, em “Geometria do Acaso”. Artífice de signos, lá está ele, Luciano Lanzillotti , nova safra do dizer contemporâneo, hábil, reluzente; está ali, laborioso, abrindo janelas para melhor se comunicar e sincero, expõe o seu making of :

Pele Curtida

Lento é o processo

É preciso acabar com a vida do animal

Abrir as entranhas, retirar vísceras.

Cortar, milimetricamente, o couro

Na junção entre ossos e ligamentos,

Sem que se estrague o produto.

Depois alternar entre colocar ao sol

E banha em soluções químicas,

Amaciar o pelo, dar cor e cheiro

Curtir nossa pele e sentidos.

Et voilà, o poeta – o que faz linguagem em sua geométrica cozinha semiótica, exercita uma dialética entre descobrir e inventar, tirando de seu molho – de chaves, as que podem destravar o inaudito. Sabe tirar a pele das palavras, abre, corta, junta, alterna, depura, distorce, amacia, aromatiza, colore, desfamiliariza, enfuna o pensamento que se mobiliza, tenciona emoções, causa espanto, já que o poeta e a poesia não podem se preocupar em desmanchar tudo, provocar estragos. Poesia não é para ser audível, bonita, comportada; um de seus afazeres é transformar tudo em som, cor, cheiro, toque, em pele descarnada, tecido, texto novo (o que permaneça novo). Nosso poeta, em questão, sabe disto e incansável, pretende continuar a lida, imitando a citação em que se ampara, na abertura do livro: “continuar a primeira palavra escrita, continuar a frase, não resigná-la, a temor, imperfeição, náusea, continuar com imenso trabalho, irreconhecível bosque do abstrato”), Hino à vida, (Paulo Mendes Campos). Esperemos pelo novo livro. E se se pode afirmar que “ninguém escreve para si mesmo, a gente escreve para atrair, para encantar, para ser amado”, (Mário de Andrade), nós, todxs, leitores/as de “Geometria do Acaso”, amamos “Lux ciano” Lanzillotti.


Rose Calza é Doutora e Livre-Docente, escritora e professora.


Crie seu site com o WordPress.com
Comece agora
:)

Comentários