PAIXÃO E PRAZER
RUY ESPINHEIRA FILHO
Numa carta a Anita Malfatti, em resposta à correspondência em que a pintora definira o artista como um “transmissor de beleza” e dizia desejar ter um Debret e um Rugendas em casa para estar sentindo vontade de “fazer um quadro com sabor daquela gente”, Mário de Andrade escreveu que o artista “não é ´transmissor´ de beleza, é criador”, acrescentando que a arte, “que não é só beleza, por mais pensada, é feita com carne, sangue, espírito e tumulto de amor”.
Transcrevi estas palavras de Mário na abertura do primeiro texto do meu ensaio de doutorado em Letras e delas tirei o título do livro: Tumulto de amor e outros tumultos – criação e arte em Mário de Andrade, publicado pela Record em 2001. Palavras que, creio, são das mais expressivas escritas sobre a arte, porque sem carne, sangue, espírito e tumulto de amor não se faz arte alguma. Carne, sangue, espírito e tumulto de amor que encontramos neste Fotografia de um minério, de Luciano Lanzillotti.
Bem, livros de versos são comuns, mas livros de poesia são coisas raras. Assim, foi para mim uma bela surpresa a leitura do livro de Lanzillotti. Desde o primeiro poema já se aprofunda – de uma maneira acho que só alcançada mesmo pela poesia – no mistério do homem, que o poeta Píndaro definia como “o sonho de uma sombra”. Leiamos os versos:
A ESFINGE REVISITADA
Na estrada para Tebas,
um espelho
e uma dúvida:
decifro-me ou me devoro?
Mistério e perplexidade. É o ser humano – esse “sonho de uma sombra” – diante de um extremo enigma. Não é a Esfinge que deve ser decifrada, como nos é contado desde a Antiguidade, é a decifração do homem de si mesmo, do seu próprio enigma. O que é possível? Não sei. E, se possível, essa decifração não obrigará à autodevoração? Poderá o homem decifrar-se sem se autodevorar? Ou ninguém poderá decifrar-se nunca? Bem, não faltam casos de homens que se autodevoram, geralmente pela loucura ou pelo suicídio, mas será porque se decifraram – ou porque jamais se conseguiram decifrar? O mistério e a perplexidade persistem dramaticamente. Talvez toda a vida humana seja uma estrada de Tebas...
Aliás, o drama da vida humana está quase sempre presente na poesia de Luciano Lanzillotti. Inclusive a trágica efemeridade. No poema Quem dá por isso? Encontramos a questão posta de maneira, direta, implacável mesmo:
Há egos,
imortais,
banqueiros
e caixeiros viajantes:
todos vão rumo ao mesmo fim,
mas quem dá por isso?
Sim, quem dá por isso? Normalmente só nos preocupa a efemeridade dos que amamos, assim como – é claro – a nossa. O efêmero que, na verdade, é a nossa própria condição. Como, às vezes sabemos, é mesmo tudo – nós, o mundo imediato que nos cerca e o vasto universo (ou mais de um universo, ou de muitos, muitos...) de que não sabemos quase nada (como também de quase nada sabemos de nós mesmos).
Da condição humana jamais estaremos livres. Como revela a silêncio do poema Arames e espinhos. Leiamos o trecho final:
... esse silêncio
cercado de arames farpados
e espinhos.
Por onde tento seguir,
algo de mim permanece preso:
um braço, uma perna.
Embora a manhã se dê ao ensolarado,
tenha título, casa e conta bancária.
Ele surge como sinal de alerta
de que nada está pronto:
preciso cavar ainda.
E quando, na vida humana, podemos dizer que tudo está pronto? Talvez na hora da morte, se tivermos lucidez e coragem para tal reconhecimento. E no silêncio o poeta se vê cercado por arames farpados e espinhos, reconhece que é muito difícil prosseguir, mesmo com vida arrumada e uma manhã de sol. Sim, ele precisa “cavar ainda”. Como todos nós precisamos – porque implacável necessidade da condição humana.
Fixei-me nestes três exemplos para fornecer ao leitor uma aragem, digamos assim, deste livro como um todo. Poderia citar muitos mais exemplos, mas creio que estes três situam bem o leitor – porque todas estas páginas transitam, sobretudo, como ocorre sempre na melhor poesia, pela condição humana em situações essenciais: o enigma do ser, a brevidade no mundo, a necessidade de ir em frente, sempre e sempre. Tudo com a presença dos sentimentos, das carências, do amor, como sempre, repito, na melhor poesia.
Desta forma, penso que já dei muitos motivos para a leitura de Fotografia de um minério. E evito continuar, pois, quando escrevo algo sobre poesia relembro o que Jorge Luís Borges escreveu certa vez e está em Esse ofício do verso: “Sempre que folheava livros de estética, tinha a desconfortável sensação de estar lendo as obras de astrônomos que nunca contemplavam as estrelas. Quero dizer, eles escreviam sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é em realidade: uma paixão e um prazer.”
Assim, chega de conversa – e vamos às estrelas da paixão e do prazer da poesia de Luciano Lanzillotti.
Bahia, abril da pandemia de 2021.
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